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Ontem, a democracia americana revelou a sua pujança: ver o antigo diretor do FBI testemunhar, em sessão pública, sobre as práticas de gestão de dossiês políticos altamente sensíveis por parte do presidente do país, ouvindo da sua boca que teve receio de que ele "mentisse", não pode senão reforçar a confiança em que os famosos "checks and balances" ainda são, nos Estados Unidos, uma coisa séria.
Desde há uns meses, o Mundo vive traumatizado com a figura que os americanos elegeram para chefiar o país, sendo poucas as dúvidas de que essa pessoa está muito longe de ter as qualificações exigíveis para o exercício das funções. O sistema americano deu mostras de ter "falhado" no escrutínio seletivo que as máquinas partidárias costumam empreender, a montante do voto popular. É claro que a América já tinha produzido figuras do jaez de um George W. Bush, ou, nas vice-presidências, Spiro Agnew ou Dan Quayle, mas Donald Trump parece oferecer a perspetiva de, por contraponto, os vir arvorar em "estadistas" na memória história futura.
O que ontem se passou não deverá ter consequências de maior, para além de acentuar o aumento do desgaste político do presidente. Quem conhece a máquina política americana sabe que é imensa a legitimidade de quem consegue o acesso à Casa Branca, particularmente se tiver em relativa consonância um Congresso apressado em fazer passar uma agenda política de reversões. A menos que Trump venha a cruzar uma gravosa "red line", as hipóteses de vir a ser afastado no meio do mandato continuam muito remotas.
Ficou ontem muito claro que o "dossiê Rússia" está em cima da mesa da política americana, embora por razões bem diferentes daquelas que existiam há escassos meses. Por essa altura, Trump havia dado estranhos sinais do seu interesse em trabalhar num apaziguamento com Moscovo, indiciando mesmo um conluio de contornos pouco claros com Putin. As versões mais benévolas inclinavam-se para isso fazer parte de uma estratégia de isolamento da China (vista como o inimigo comercial, face a uma Rússia economicamente sufocada). Moscovo poderia ser também um possível parceiro numa acomodação no Médio Oriente, de onde os Estados Unidos (desde George W. Bush e Obama, note-se) davam sinais de estar a recuar.
Ontem, olhando o tom dos congressistas sobre as interferências cibernéticas russas, fica clara a razão pela qual Donald Trump mudou já de agulha perante Moscovo: a acrimónia pré-Guerra Fria continua bem enraizada nos EUA e desvalorizá-la foi um erro crasso (entre outros) do novo presidente. E o Congresso, por mais enviesado politicamente que esteja, como está, tem sempre uma dimensão de sentinela crítica que convém não desvalorizar. Ontem fui dormir mais descansado, confesso.
* EMBAIXADOR