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A participação democrática em urna do povo português é uma bola que se esvazia a cada chuto. Em 2015, a Liga de Clubes desfolhou o regulamento disciplinar da democracia, percebendo que não haveria de sair sanção ao fintar as regras de jogo do bom senso. A Comissão Nacional de Eleições confirmava: marcar jogos de futebol para o dia dos votos não era sensato mas... não era proibido. E no dia 4 de outubro desse ano, alguns portugueses exerceram um novo direito de preferência democrático, optando entre um União-Catarina ou um Belenenses-Costa, um Passos-Sporting ou um Jerónimo-Guimarães, um Benfica-Portas ou um André Silva-Porto (neste caso particular, com um golo solitário do pan-avançado). Na altura, os argumentos que justificavam o precedente eram muito semelhantes aos agora apresentados para o "replay", procurando justificar um rotundo autogolo na lógica das prioridades com a ideia de inevitabilidade. Já se percebeu. O país até pode ser chamado a ir a votos ano-sim-ano-não, mas sabe-se agora que depositará sempre as suas escolhas num belo domingo de futebol.
A possibilidade de fazer duas ou mais coisas num só dia é algo inteiramente imputável à espécie humana. Sim, nós podemos. Aconselhando o voto matinal, é perfeitamente possível compaginar o combate à abstenção com espectáculos desportivos que movimentam centenas de milhares de pessoas. E é bem verdade que nem a eucaristia dominical se interrompe para o segredo do voto. Aos menos madrugadores amantes da bola, fácil será aconselhar a gestão profissional da sua agenda de domingo, o que lhes permitirá passar com cachecol pela urna imediatamente antes do seu encerramento e logo após o fim do jogo. Onde se lê a habitual recomendação dos jogos grandes "chegue um pouco mais cedo ao estádio" para ver, poderia ler-se "saia um pouco mais cedo do estádio" para votar. Se nas legislativas de 2015 nos ofereciam as competições europeias dos clubes com um "plus" de selecção às voltas com a Dinamarca e Sérvia, nas autárquicas de 2017 servem-nos competições europeias de clubes com um "jackpot" de selecção às voltas com a Andorra e Suíça. Algo novo? Falta então experimentar o chuto de penálti pelo tiro ao boneco nas presidenciais ou o passe em profundidade para as costas da defesa nas europeias. Mas lá chegaremos.
Sem abstenção. Quando olho para o futebol que pretende ir com os votos, imagino a democracia a dizer "anda bater, tu bates bem", à bola do diálogo entre Ronaldo e João Moutinho na antecâmara dos penáltis do Portugal-Polónia. Até pode dar em golo. Duvido é que dê bom resultado.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia.)
* MÚSICO E JURISTA