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Quem gosta de desfiar o novelo da política assistiu nos últimos dias a uma curiosa inversão de posições. Um Governo remetido à defesa por causa das SMS do ministro Mário Centeno, subitamente transformou-se num Governo ao ataque por causa dos offshores. A matéria jornalística não foi "plantada" como chegou a esgrimir a Oposição, mas o timing foi o ideal para tirar do foco um ministro politicamente inábil.
Uma coisa não tem a ver com a outra, mas os ciclos comunicacionais funcionam hoje assim. Que o digam os muitos norte-americanos que não perdoam à Imprensa a atenção suscitada pelo emails desprotegidos de Hillary Clinton, quando poderia estar a tratar o caso das ligações da candidatura de Trump à Rússia. Não poderia, porque o conhecimento dos factos foi posterior, mas a sensação de injustiça dos apoiantes de Clinton só aumenta quando se entende a potencial desproporcionalidade da gravidade dos dois casos.
Ainda não sabemos a gravidade do caso dos offshores, porque falta perceber se entre os 20 registos e os 10 mil milhões que não terão sido fiscalizados há fuga ao Fisco ou qualquer outro negócio menos claro. Mas o que sabemos até agora permite-nos ir construindo um julgamento sobre a atuação do anterior Governo neste caso. Erros informáticos à parte, as diferentes versões que apresentou o ex-secretário de Estado das Finanças, Paulo Núncio, sobre o sucedido, a sua decisão de não publicitar os movimentos para os offshores e a sua confissão de desconhecimento sobre estes movimentos durante quatro anos são de molde a questionarmos o real empenho em vigiar potenciais comportamentos ilícitos nesta área.
Por isso bem podem vir crismar de populistas as palavras do primeiro-ministro quando disse ser "absolutamente escandaloso que um Governo que não hesitou em acabar com a penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha tido a incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros que fugiram do país". Os excessos de retórica não ajudam, mas aquilo que verdadeiramente alimenta o populismo é a sensação de que quando os sacrifícios chegam não são para todos e que há sempre quem consiga fugir impunemente ao controlo.
Experimentem explicar ao meu colega, trabalhador por contra de outrem com as contas em dia, que viu os inspetores das Finanças vasculhar a sua contabilidade em dois anos sucessivos, que populismo é criticar quem não fiscalizou 10 mil milhões. Vão e tenham boa sorte, porque vão precisar.
* SUBDIRETOR