As comemorações dos 40 anos da Revolução de Abril devem ser assumidas pela Assembleia da República (AR) com um nível de responsabilidade compatível com a dignidade da efeméride. Quem o diz é Jerónimo de Sousa, um dos veteranos do Parlamento, que certamente não estará só nesta exigência.
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As comemorações dos 40 anos da Revolução de Abril devem ser assumidas pela Assembleia da República (AR) com um nível de responsabilidade compatível com a dignidade da efeméride. Quem o diz é Jerónimo de Sousa, um dos veteranos do Parlamento, que certamente não estará só nesta exigência.
A apenas dois meses do 25 de Abril, a preparação da celebração daquela que é, para muitos, a mais simbólica data do calendário nacional revela um retrato da nossa elite política absolutamente desolador. Ausência de planeamento, desorganização, propostas avulsas, inexistência de orçamento, pedidos de borlas, está lá tudo, com o bónus do tradicional "guardar para a última hora".
É desolador ouvir a segunda figura do Estado sugerir que os custos financeiros da comemoração da chegada da democracia poderiam ser suportados por patrocínios de empresas privadas, como se se tratasse de uma daquelas inaugurações em que o hipermercado oferece as flores e os comes e bebes.
É desolador saber que foi endereçado a Rodrigo Leão um convite para compor uma peça musical especial alusiva ao 25 de Abril e ouvir o compositor, meio estupefacto, ser confrontado por um jornalista sobre a possibilidade de o fazer de borla, quando tal não havia sido sequer ventilado por quem fez o convite em nome da AR.
É desolador atirar para a praça pública o nome de Joana Vasconcelos para ornamentar com cravos umas viaturas Chaimite, sem a confirmação do convite e balizando, à partida, o trabalho criativo que é suposto ser a artista a desenvolver.
É desolador aguardar até dois meses antes de uma celebração dos 40 anos, sem nada pensado ou definido, e esperar que os intervenientes, artistas incluídos, façam o seu exercício criativo de uma semana para a outra, como quem assa frangos.
É desoladora esta atitude de pedinte a que chega um órgão de soberania, ao reclamar dos intervenientes que entendam a sua participação como uma dádiva para o seu país, quando alguns dos seus titulares não abdicam de benefícios a que acederam em condições mais ou menos escandalosas.
É desolador perceber que não existe ainda orçamento para as comemorações, quando toda a administração pública está submetida ao controlo milimétrico de magros orçamentos e ao novo garrote chamado lei dos compromissos.
Muito francamente, Salgueiro Maia e companheiros mereciam mais da República. E esta, por sua vez, merecia uma Assembleia mais bem presidida. Aquilo a que assistimos é uma espécie de grafíti da nossa classe política, uns traços que transmitem ironia, estupefação, choque mesmo. Quando as elites são assim, que esperar da quadrícula?
Por coincidência, a Universidade do Minho comemora amanhã 40 anos. Corro o risco de opinar em causa própria, já que sou vice-reitor desta instituição, mas não posso deixar de manifestar o meu orgulho por mais este 17 de fevereiro, com o extra de saber que as celebrações começaram a ser preparadas no verão do ano passado e que amanhã tudo estará alinhado para o tiro de partida de um rico programa que se estenderá por dez meses, com conferências, testemunhos, concertos, exposições, etc., orçamentados e calendarizados com todo o rigor.
Esta comparação suscita-me uma reflexão sobre os caminhos trilhados pela nossa democracia. Por um lado, vejo uma instituição de ensino superior que está no terreno, que gera valor, que impõe tração no processo de desenvolvimento regional, que luta contra os cortes de financiamento e a teia burocrática e centralista que tudo paralisa, e que, apesar disso, se motiva e mobiliza todos os dias na procura do crescimento e da excelência. Mas, por outro lado, observo um órgão de soberania lento, desorganizado, casuístico, que parece perder qualidade com o tempo, ao ponto de não ser capaz de dignificar a festa da democracia.
Muito mudou em Portugal nestes 40 anos. Fala-se frequentemente da descolagem do Estado, dos seus órgãos de soberania e da própria classe política relativamente à sociedade, às suas empresas e instituições e ao cidadão comum. O planeamento das comemorações dos 40 anos da Revolução de Abril e do 40.o aniversário da Universidade do Minho revelam duas atitudes opostas que, lamentavelmente, parecem confirmar essa descolagem. Urge recolar.