Ao ver as imagens do descarrilamento de Santiago de Compostela lembrei-me de imediato de quando, há três anos, pude filmar uma viagem entre Barcelona e Madrid junto do maquinista do AVE (Alta Velocidade Espanhola). Portugal continuava a discutir o TGV (sigla francesa para "Train de Grand Vitesse" - comboio de alta velocidade) quando Espanha já tinha alta velocidade e bitola europeia desde 1992. Fazia sentido integrarmo-nos na rede europeia de transportes ou devíamos ficar orgulhosamente sós nesta rua sem saída que é o nosso país?
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Viajar a 300 km/h no AVE não é muito diferente de se viajar a 220 km/h em alguns troços do Alfa Porto-Lisboa. Em Espanha, um TGV a circular numa linha construída em exclusivo para aquele fim, sem passagens de nível ou cruzamento com composições de transporte suburbano, parece seguríssimo: tem um plano de velocidade para cada fase da viagem, limitadores de velocidade caso o maquinista ultrapasse o plano indicado, etc.... Não é por acaso que há tão poucos acidentes com alta velocidade em todo o Mundo.
Então por que sucede "Santiago"? O maquinista é a causa mais provável. Mas o erro humano tem na base um problema de orçamento na construção da linha que o potenciou. Ao poupar-se muito dinheiro (compreensivelmente) na expropriação de terrenos e casas, a nova linha de alta velocidade galega ficou condenada a entrar em Santiago de Compostela pelo velho corredor ferroviário. Ora Francisco Garzón tripulava um comboio que acabava de percorrer uma reta de 80 km entre Ourense e Compostela a 200 km/h, estava cinco minutos atrasado e é obrigado a fazer uma curva apertada, não desenhada para alta velocidade. Não abrandou. O AVE voou como se fosse um brinquedo.
Todavia a tragédia não se dá apenas pelo facto de o maquinista não ter reduzido a velocidade, mas porque é exatamente a partir do troço antigo de entrada na cidade que não existe controlo de velocidade exclusivamente para o AVE. O tradicional sistema, para todo o tipo de comboios, não obrigou o comboio a abrandar subitamente. Portanto, o sistema não tinha plano B e o maquinista confiou na infalibilidade da máquina. Como se aquela tonelagem, coberta de tecnologia, não pudesse descarrilar. Mas a Física continua a ser a Física.
E esta é uma boa lição para Portugal. Membros de diferentes governos têm inventado recuperações da Linha do Norte para todos os fins e mais um, incluindo a ideia de que a velocidade elevada (200 km/h) poderia ser praticada em quase toda a linha atual, e mais: até um carril para se circular também em bitola europeia daria para encaixar! O problema é que a Linha do Norte tem mais de um século, curvas apertadas, zonas densamente povoadas, leitos de cheia e é uma bomba-relógio. Uma linha que suporta o Alfa, regionais, suburbanos e mercadorias, e uma capacidade operacional já perto dos 100%, tem tudo para correr mal ao mínimo detalhe como se viu ano passado no choque, com poucas consequências, em Alfarelos, porque supostamente um comboio não travou no vermelho (deslizou com óleo a mais nos carris...?).
Além disso, Portugal precisa de uma nova ligação ferroviária de bitola europeia entre Viana e Setúbal (com ligações aos portos de Leixões, Aveiro, Lisboa e Sines) e daí para a Europa através de Viseu e Vilar Formoso, de forma a ter operacionalidade para as mercadorias. Mas, a prazo, também as ligações de passageiros entre as principais cidades portuguesas serão essenciais para ficarmos menos dependentes do petróleo e do custo do carbono. O problema é que nada mudou no Governo com a saída de Álvaro Santos Pereira se o mesmo secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, continua a defender tudo e o seu contrário num dossier ferroviário que, manifestamente, não estudou a fundo.
Podemos não querer ter ferrovia. Mas, num momento em que já perdemos os fundos comunitários 2007-2013, temos de decidir se nos candidatamos ao apoio comunitário para redes transeuropeias e exportarmos por ferrovia (além de concessionarmos a privados a exploração de comboios rápidos de passageiros). Sim ou não. Sabendo que os efeitos práticos da decisão demorarão mais de 10 anos. Esta é, aliás, uma boa matéria para os três partidos da 'salvação nacional' responderem de vez.