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David Lynch contrariava o preconceito adolescente de que a arte, para ser boa, precisa de ser sofrida. O realizador, que morreu há poucos dias, parecia uma criança a falar de coisas sérias, o que lhe dava graça e desenvoltura. Não se percebia bem se ele era um velho a falar como uma criança ou uma criança a falar como um velho.
Em todo o caso, David Lynch era uma espécie de sábio - e autoridade nas coisas da felicidade artística, já que os seus filmes eram pesadelos cheios de esperança. Davam a ideia de que quem os fez estava enjaulado na tristeza. Portanto, filmes muito de acordo com o conceito de génio atormentado. Mas quando Lynch falava, no seu encanto aparentemente ingénuo, percebia-se que os pesadelos tinham algo de lúdico: ao brincarem com hipérboles, eram jogos de coisas sérias.
O grande problema da tormenta é que chega a toda a gente. Dos que apertam parafusos numa linha de montagem aos que servem cafés aos que lidam com o Excel aos que legislam aos que não fazem nada. A tristeza é um dos predicados de termos dois olhos e um cérebro. Mas a grande beleza da alegria é que também chega a toda a gente. Dos que apertam parafusos numa linha de montagem aos que servem cafés aos que lidam com o Excel aos que legislam aos que não fazem nada. É um dos predicados de termos um cérebro e dois olhos.
Aconteceu aos artistas a sorte de se dedicarem à massa tormentosa que se esconde dentro de qualquer pessoa. De acordo com Lynch, a arte não é a origem da tristeza, antes a sua fuga. Costumava usar o exemplo de Van Gogh, insuportável e maníaco, que só seria feliz quando pintava.
Mas os artistas sabem que se tornam melhores se duvidarem, se desconfiarem de si mesmos e do que produzem. E por isso alguns tendem a confundir a dúvida e a ansiedade com o fim, quando é o meio. Por exemplo, os escritores tímidos que acham que cada frase tem de ser tão original e brilhante que nunca chegam a escrevê-las. Como Basil, o poeta de “Zorba, o grego”, de quem me lembro sempre que me deixo acanhar pela dúvida.
Zorba, excessivo e caótico como é, revolta-se com a tibieza do amigo e diz-lhe: “raios partam, patrão, gosto demasiado de ti para não te dizer. Tu tens tudo, mas falta-te uma coisa. Falta-te um pouco de loucura. Um homem precisa de loucura, ou não se atreve a romper as amarras e ser livre”.
A David Lynch não faltou certamente um pouco de loucura. Era um homem alegre, de amarras rompidas e livre, sem tibiezas que o manietassem, sem artes sofridas. Talvez por isso, um grande artista.
O autor escreve segundo a antiga ortografia