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Há, nos gatos, uma característica que sempre me intrigou: a tendência que têm, de entre os membros de uma casa, de se abeirarem daquele que lhes pareça estar em maior sofrimento. Assim se passa habitualmente quando um dos elementos da casa se encontra doente, saltando o pequeno felino para cima dos pés da cama dando corpo ao que, no humano, se conhece por "fazer companhia"; tal acontece também na ausência de qualquer maleita quando um elemento da família aparenta estar ocupado num maior labor profissional, optando o pequeno tigre por segui-lo pela casa, vigiando-o do cadeirão mais próximo numa noite de trabalho ou deixando-se condescendentemente afagar num dos extremos do sofá.
Por uma razão ou por outra é sempre um imenso enigma perceber o modo como os gatos tomam as dores dos seus donos como se possuíssem poderes para se ligar ao espectral, alimentando a suspeita de que, se existem almas num outro mundo, são os gatos quem melhor comunica com elas. Não foi sem espanto que vi, em Lindos, na ilha de Rodes, um semovente grupo de gatos assenhorear-se da acrópole para - estáticos sobre os degraus imitando cariátides - se fazerem donos das ruínas por sobre o Mediterrâneo. Suspeito que o não faziam por mera ocupação de espaço, anztes velavam as vidas que tendo habitado essas pedras, permaneciam por ali como almas no purgatório, vivendo por dentro do limbo existindo na existência dos gatos. Ou, na Área Sacra dell"Argentina, na Curia de Pompeu, estirados sobre lajes romanas junto a colunas cansadas, cotejando comprimentos como é costume entre os deuses. Ou, mais próximo de nós em glaciares cemitérios, explorando o labirinto de campas por entre tumbas de pedra, as pequenas orelhas espetadas ao mais ténue espirro das almas.
Contava, há tempos, o JN que no Estabelecimento Prisional de Coimbra alguns dos reclusos adoptaram os gatos que por lá vivem, vogando entre pátios e celas como se eles próprios fossem reclusos; gatos que, de lá para cá, cruzando as grades de ferro, se atribuem a si mesmo sentenças de prisão ou a liberdade.
Pelo que pude perceber, os funcionários da cadeia não permitem que os gatos vivam dentro das celas. Ora, parece-me mais ou menos óbvia a função humanizante que os bichanos podem ter no espaço de uma prisão quando, afagando o pêlo sedoso do lombo dos animais, a força de uma mão criminosa ansiando por uma rixa lhe aconteça ser aplacada pela macieza de um gato.
É verdade que os gatos acalmam. E nos ensinam a ser sociáveis. Dessa forma não pensaram os funcionários da cadeia que - parecendo-lhes excessiva a convivência com o homem - os removeram das celas, esterilizando-os no Canil, devolvendo-os de seguida, um a um, à liberdade. Olvidando a obrigação de reinserir os reclusos - ou, quem sabe, receosos de perder o emprego para os gatos - os funcionários burocratas dispensaram-nos da tarefa de contribuir para o remanso, humanizando pelo belo.
Lá longe, na distante Dinamarca, depois de terem eliminado uma girafa de "maus genes", os funcionários do Jardim Zoológico de Copenhaga acabam de abater quatro primos dos felinos de Coimbra - dois leões e duas crias - com a espantosa explicação de terem falta de espaço.
Mas as almas estão em toda a parte e não ocupam lugar. Quero ver como é que agora vão conseguir impedir as almas desses felinos de regressar ao Jardim, como sempre regressam as almas aos corpos de onde partiram, já desde o antigo Egipto.
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