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De Betty Grafstein (com mais de noventa anos), que pediu ajuda num hospital privado por alegadas queixas de violência física e psicológica, a uma mãe de cinco filhos em Almada, neste momento em coma por afundamento craniano, vítima de um espancamento tão atroz que só terminou porque três das crianças foram a um restaurante pedir socorro e a PSP conseguiu entrar no quarto barricado pela varanda dos vizinhos, os crimes de violência doméstica são omnipresentes nas páginas dos jornais. Não há sinais de abrandamento. São transversais a classes sociais, faixas etárias, zonas do país, constituindo o crime mais comum em Portugal, ano após ano (mesmo que a contabilização seja sempre por baixo, pela comum falta de queixas).
Todos os anos mais de vinte mil processos são abertos, mais de vinte mulheres são mortas, mas a celeridade na proteção da vítima não é a desejável e, se as reincidências são previsíveis, as condenações são escassas e, quando acontecem, demasiado leves.
O mesmo acontece com os crimes de violência e abuso sexual, perpetrados na maioria das vezes por pessoas da família, e em que a justiça tarda, perdendo tempo inclusivamente a medir saias e a tentar acusar as vítimas. E se neste tipo de crimes deter um agressor é salvar muitas mulheres e crianças no futuro, em Portugal não estamos a conseguir quebrar o ciclo, nem pela justiça, nem culturalmente (veja-se os números da violência no namoro).
São crimes que se reproduzem com o patriarcado, nesta condição de mulher servil, que pertence ao homem, que deve submeter-se ao seu comando, sem direito a livre-arbítrio. Basta perceber que os mesmos números assustadores assolam os países que nos são culturalmente próximos (Espanha, Brasil, Itália). Basta perceber a romantização, ou pelo menos a condescendência, com que se encara o ciúme e a “humanidade” dos crimes ditos passionais. É a nossa cultura machista que educa homens violentos, por não autorizar a sua vulnerabilidade, por não lhes permitir exprimir emoções, por fazer da sua “honra” um valor superior ao da vida humana (sobretudo se for de uma mulher).
A mesma cultura machista que aprisiona mulheres em relações que devem manter a todo o custo, porque a sua validação depende desse vínculo, mulheres que põe a abnegação acima da sua própria integridade física. Uma sociedade doente. E o mais irónico é que o discurso político dos supostos justiceiros da pátria está centrado na criminalidade imaginária dos imigrantes, está apontado para ameaças externas, quando as mulheres e as crianças deste país estão sob guerra civil e é dentro de casa que mora o perigo real.