Poucas pessoas têm sangue de Reformador, que conjuga o dom, o saber e a circunstância. E a humildade. A humildade do Reformador é tão útil a ouvir como a dizer e a fazer. Depois, o Reformador tem a angústia das grandes causas. Angustia-se pelas reformas por fazer e sofre os agravos pelas reformas já feitas. Os desagravos só chegam mais tarde, quando chegam.
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Reformadores...
Reformador foi seguramente Francisco Sá Carneiro, a morte em 1980 impediu-o de ir muito mais longe. Tentou a via reformista do regime antes do 25 de Abril, em plena primavera marcelista. Tentou e encetou grandes reformas em democracia, havendo cativado, aliás, o chamado grupo dos Reformadores - por vezes, o nome não é o menos -, de que faziam parte pessoas como Medeiros Ferreira, agora falecido e a quem presto homenagem. Reformador foi Adolfo Suárez, morreu no dia 23. Foi ele quem liderou a transição do regime franquista para a democracia, com a elegância, a clarividência e a firmeza que a história regista. Suponho que muitos dos portugueses de hoje, de menos de 50 anos, não têm bem a noção do que então se passou, em Portugal e em Espanha.
A desonra e a angústia da dívida...
Há dias, durante a apresentação de um livro, conhecido psiquiatra disse que o impressionava ouvir falar da honra da República. Na verdade, com o sentir e o alcance que só o fundo da alma consente, aludi pela primeira vez à questão da honra na sombria e aflitiva primavera de 2011, estávamos em dores de parto e aguardávamos a nascença de uma criatura de três cabeças e de supranacionalidade, vulgo troika. Publiquei o artigo Resgatar a honra e o futuro, no Público. Dediquei-o à deplorável e desonrada situação das contas da República. A ideia da honra da República reapareceu-me, com nova acuidade, no Outono de 2012, em Serralves. Falei da renegociação honrada (RH) da dívida pública. Sintetizo: RH, porquê? Porque é demasiado pesado o serviço da dívida; honrar a dívida é motivo de angústia. RH, com quem? Com a Europa. RH, quanto? Cerca de 40% da dívida total. RH, como? Pagamos o capital todo, mas com menos juros e muito mais tempo.
Outras razões de desonra e angústia...
Infelizmente, caíram as manchas no pano branco da honra da República e alastraram, há anos, a outros campos que trazem angustiado o Reformador. Razões de desonra e angústia? Residem na justiça, no seu caminhar de lesma, na aparente apatia nos processos da alta corrupção, etc. Ou residem nos "atrasados", imensas dívidas a fornecedores do sector público não regularizadas, num afrontoso abuso de posição contratual, que fustiga ainda mais a economia e subverte o conceito de Estado pessoa de boas contas. Ou residem na exuberância de grandes gastos públicos em anos passados, em projectos que têm zero de utilidade social, ou zero de efeitos na competitividade. Ou residem na não responsabilização dos políticos que arrastaram a República até à ruína, ao longo de anos de danosa governação, e residem na falha de qualidade das instituições da República a quem estava cometida a vigilância das finanças públicas e dos equilíbrios macroeconómicos. Ou residem na violação dos laços de confiança entre o Estado e muitos dos mais velhos, contribuintes de uma toda vida activa, que agora vêem a poupança das pensões ser amputada sem que equivalente sacrifício seja imposto a outros titulares de outras formas de riqueza. Contudo, a maior das maiores razões reside no facto de a economia não dar trabalho a muitos e muitos dos cidadãos da República, homens e mulheres, jovens, que são lançados para o desemprego por tempo indefinido, muitos deles nunca mais voltarão a trabalhar.
A saída do programa da troika...
Razão de angústia - oxalá que não de desonra - é igualmente a decisão política quanto à etapa pós troikiana. Finalmente sós, sim ou não? Como muitos outros observadores, aconselharia condução prudente, sinais de trânsito de triângulos invertidos, policiamento, assistência em viagem. Não sós, portanto. Neste mesmo sentido de recomendação vai a celebrada revista The Economist, no seu último número, de há dias. Depois de discorrer sobre os nossos progressos e vulnerabilidades, diz: "Portugal precisaria de beneficiar de uma precautionary credit line from the euro zone's rescue fund. Mas a Alemanha está relutante. Assim, parece que Portugal irá fazer uma saída sem safety net needed by an economy that is in better shape but remains fragile".
A imagem que junto, dos eléctricos lisboetas, é figura da revista, a legenda também o é: "uma saída perigosa".
O autor escreve segundo a antiga ortografia