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Em qualquer sociedade existem diferentes preferências dos cidadãos. Por vezes, resultado dos seus próprios interesses, outras refletindo a sua visão do bem comum. É função da política assegurar a reconciliação (quando possível) ou arbitragem (quando necessário) entre essas diferentes preferências. Isso exige um espaço de debate racional e informado, em que essas diferenças se manifestem e os seus argumentos sejam apresentados e discutidos. Exige também que, quando o acordo não é possível, existam processos e instituições que beneficiem da confiança de todos na "arbitragem", política ou jurídica, dessas diferenças. Não é necessário à sobrevivência da democracia que todos concordem com tudo, mas sim que se aceitem como legítimas mesmo decisões com que não se concorda.
Eis o que está em risco, numa época em que a polarização e radicalização política minam o debate e a credibilidade das instituições. Poderia falar de Portugal e de como se substituem argumentos por desqualificações (substituindo a apresentação de razões por uma "etiqueta feia" que se atribui a alguém). Desta vez, o exemplo é o processo de confirmação do juiz Kavanaugh (candidato ao Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, apresentado por Trump e sujeito a aprovação pelo Senado). Perante as acusações de alegado assédio sexual na juventude de Kavanaugh, impressiona a total incapacidade de concordar na forma de apurar os factos e decidir sobre eles. Os dois lados parecem apenas interessados em que os factos se adequem aos seus objetivos políticos. Os republicanos limitaram as possibilidades de investigação, partindo do pressuposto que é uma conspiração contra o seu candidato. Os democratas reclamam por mais investigação, sendo claro que não estarão satisfeitos até esta produzir as conclusões que pretendem. Perante tudo isto, Kavanaugh fez o pior possível para um candidato a juiz do Supremo: acusou os democratas de vingança contra Trump e ele próprio, em nome dos Clinton. Não sei se é ou não culpado de assédio sexual. Sei que demonstrou não ter perfil para juiz na forma como reagiu a essas acusações. A sua ida para o Supremo, depois disto, será mais um passo para acabar com a confiança nos processos e instituições que "arbitram" a democracia. Quando George Bush Jr. foi eleito, tudo dependeu de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça acerca dos contestados resultados eleitorais na Florida. Muitos democratas pretendiam que Gore rejeitasse esses resultados. Este, e bem, entendeu que a democracia norte-americana exigia reconhecer a credibilidade e autoridade do Supremo Tribunal. Tenho dúvidas que isso acontecesse de novo. Sabemos, pelo exemplo do futebol, as consequências de perder a confiança nos árbitros.