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Tendo por base e por grande elemento justificador a ideia velada de que somos todos corruptos, temos assistido nos últimos anos a uma vertigem legislativa e normativa onde o código da contratação pública é um dos seus expoentes.
Nada tendo contra tudo o que possa contribuir para aumentar a transparência de processos, e em particular dos que envolvem a utilização de meios e recursos públicos, faço parte do grupo - que está em franco crescimento - dos que têm muitas dúvidas sobre o caminho que estamos nesse sentido a seguir.
Começo por confessar que não me parece muito ajustado aquele princípio, muito grato aos burocratas mangas de alpaca - que, de forma cada vez mais asfixiante, vêm condicionando direta ou indiretamente as nossas vidas -, de que toda a gente é desonesta e como tal temos de criar regras, procedimentos e controlos para a impedir de prevaricar.
Por elementar princípio de higiene mental, rejeito tal ideia. Prefiro - correndo o risco da ingenuidade - assumir antes que todos se portam e são gente de bem, sem, naturalmente, deixar de defender a existência em simultâneo de práticas rigorosas e regulares de prestação de contas, com a consequente mão pesada para as irregularidades e as infrações detetadas.
E assim temos, de um lado, a generalização da desconfiança, com um tentacular sistema de prevenção. Do outro, a confiança como princípio, com a punição exemplar e implacável dos incumpridores.
No primeiro caso, o cardume dos mais pequenos e toda a cadeia de valor passam a ter um pesado custo de contexto e a ineficiência por regra. Acresce que os grandes, perante um sistema mais previsível e estereotipado, preparam-se e, quando querem, conseguem contorná-lo.
No segundo, todos - grandes, pequenos e a globalidade da cadeia de valor - ganham agilidade e competitividade. O controlo, mais inteligente e menos massivo, terá um papel chave na harmonização, na racionalidade e na equidade do sistema no seu todo. Além disso, é mais civilizado.
A opção dos nossos governantes foi pela primeira alternativa, mas com especial zelo fundamentalista. Talvez porque não conseguem resistir aos tais burocratas que os assistem e neste caso, julgo, por imposição de Bruxelas, onde outros burocratas, ainda mais poderosos - que estão quase a conseguir destruir o sonho da Europa - reinam sem freio.
Por isso, seria muito oportuno que alguém estudasse e avaliasse quanto nos custa, em termos financeiros e em termos de oportunidade, essa complexa e delirante teia administrativa que dá pelo nome de código da contratação pública, que aceitamos como algo óbvio sem a menor contestação, porventura temendo que esta possa ser vista como um indício de que temos algo a recear.
Mas não vai ser fácil desenvencilhar tal novelo em que coletivamente nos deixamos enredar e que criou este clima vigente de suspeição generalizada em que qualquer um, sem o mais elementar fundamento, a coberto de um anonimato cobarde e desresponsabilizador, acusa quem quer, cabendo a este, em última análise e na mais gritante injustiça, o ónus de se defender.
Pode parecer que estou a exagerar, mas creio que este clima de "big brother" e de caça às bruxas que estamos a deixar que se instale, ainda nos pode vir a trazer grandes aborrecimentos.