O país do esbanjamento e da preguiça que vivia acima das suas possibilidades, o país das "gorduras dispensáveis", da cigarra e da formiga, o país agradecido e cumpridor, exclusivamente devotado ao pagamento da dívida e dos juros usurários cobrados pelos seus "benfeitores", esse país sumiu-se por encanto. Os números mágicos das estatísticas relativas aos últimos três trimestres anunciam agora um país regenerado de tais servidões e tão repugnantes vícios, revelam-nos uma plêiade de novos empreendedores diligentes e abnegados que, em sintonia com os desígnios dos governantes, souberam produzir o que se pretende classificar desde já como um verdadeiro "milagre económico"! A austeridade não foi uma política para equilibrar despesas e receitas. A "austeridade" é uma iluminação inspiradora que não suporta controvérsias, uma "verdade evidente por si mesma", enfim, a síntese suprema da arte de governar. Uma vez decretada a suspensão do inferno dos últimos três anos, regressamos ao estado de graça original, às falsas esperanças que defraudaram os eleitores, em 2011, cuja eficácia manipuladora se procura recuperar a todo o custo já em 2014 e, porventura, em 2015. Mas não houve milagre nem magia - trata-se apenas de mais um truque de prestidigitação.
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Na semana passada descrevia nesta coluna as propostas de reforma económica apresentadas por Jesse Meyerson na primeira edição deste ano da revista americana "Rolling Stone". A atribuição de um rendimento mínimo universal combinado com a garantia de trabalho para todos os que o pretendessem transporta a promessa de uma inédita liberdade e autonomia pessoal. Por que razão, interrogava-se o autor, não poderíamos somar às opções de vida tradicionais como o valor do trabalho e da poupança, da produção e da acumulação, novas formas de sociabilidade, outros gostos e preferências, outras paixões e afetos?
Para isso, advogava a criação de um banco público que fizesse, com eficácia controlada, o mesmo que a banca privada supostamente deveria fazer mas que, ao contrário desta, não dissipasse o crédito em aplicações especulativas ruinosas - como se viu na crise financeira de 2008 - e que distribuísse os seus dividendos pela totalidade dos cidadãos, a partir dos rendimentos de um fundo permanente, constituído através da aquisição de terras e dos meios de produção detidos pelos titulares privados que os adquirem e alienam pela melhor oferta no leilão permanente em que se transformou a economia internacional. Todas as reformas propostas, como ali se demonstrava, foram já experimentadas em algum lado por diversas formas mas foram sempre adotadas sem atropelos à ordem constitucional democrática, como solução para situações específicas ou como resposta a crises de excecional gravidade: cada uma delas é exemplificada com programas de luta contra a grande depressão - a "new deal" de Roosevelt", na década de 30 - com iniciativas atuais do Estado do Alaska ou políticas ensaiadas até na democrática Suíça. Não está, portanto, em causa promover uma alteração revolucionária da ordem estabelecida nem tais reformas carecem da instauração, ainda que transitória, de um qualquer poder ditatorial.
Nem se trata tampouco de uma mera brincadeira. Bem pelo contrário, estamos perante um exercício sério de análise crítica e desmistificação de alguns dos mais aberrantes paradoxos que se oferecem ao mundo contemporâneo como dogmas ou inevitáveis fatalidades: o permanente apelo ao consumo e ao desperdício, não consentâneo com a apregoada escassez de recursos e matérias-primas; o crescimento contínuo da produtividade, em confronto com o valor decrescente da remuneração do trabalho; a exaltação da livre iniciativa, desmentida pela concentração financeira nos mercados internacionais desregulados; o aumento real da riqueza produzida, em contraste flagrante com o agravamento da miséria e das desigualdades sociais. Não. As alternativas existem e somos nós que as construímos.