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Há em Portugal uma formação política autofágica. Chama-se Partido Socialista e tem conseguido a difícil proeza de transformar as derrotas dos adversários em vitórias. Esta semana foi ainda mais longe: o surpreendente anúncio da disponibilidade de António Costa para disputar a liderança socialista ao inequívoco - ainda que frouxo - vencedor das eleições europeias, António José Seguro, fez eclipsar o relativo sucesso eleitoral do PS. Sobretudo se comparado com a estrondosa derrota da coligação PSD/CDS. Os centristas que nos governam, será bom recordar, vão colocar em Estrasburgo o mesmo número de deputados que o Bloco de Esquerda - o principal derrotado nesta ida às urnas - e metade dos eleitos de um MPT turbinado pelo furacão Marinho e Pinto. Só que desse desaire ninguém fala. Agradeçam ao PS.
Acontece que a aparente autofagia do momento, provocada pelo anúncio de Costa num bucólico jardim lisboeta, pode ser igualmente a salvação socialista. Uma parte do partido - não se consegue quantificar - sabe-o. A parte estabelecida, a que acha que a vitoriazinha de Seguro chega para levar os socialistas ao poder nas próximas legislativas, indignou-se com o oferecimento do presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Foi o suficiente para que a crónica bipolarização socialista emergisse sem dó nem piedade.
Enquanto isto, o agora ou nunca de António Costa continua a causar variadíssimas ondas de choque no principal partido da oposição. Só ontem, houve duas demissões de membros do Secretariado Nacional e é quase certo que as réplicas vão multiplicar-se pelo menos até à realização da Comissão Nacional do partido, no sábado, onde tudo poderá ficar mais clarificado. Ou não.
Da reunião "cordata" que Costa e Seguro mantiveram ontem, não se sabe muito. Mas adivinha-se que a jogada inicial de António Costa mantém, pelo menos, o líder socialista refém de uma estratégia que, nas urnas, não o apresentou como indiscutível alternativa a Passos. Se Seguro continuar acantonado no confortável gabinete do Largo do Rato - "qual é a pressa?", poderá repetir agora... - a recusar um congresso extraordinário que abrirá caminho a Costa, não será só um líder fraco para as bases do partido. Também os portugueses não olharão o atual líder do PS como alternativa credível às políticas do Executivo de coligação. E caso António José Seguro ou a Comissão Nacional decidam não viabilizar o congresso, Costa precisará do apoio da maioria das federações distritais para conseguir os seus objetivos. Algo que, para já, não se apresenta como verosímil. Daqui até sábado, há no entanto ainda muitas manobras que se podem esconder no bastidor socialista. E um político experiente como António Costa teve seguramente em conta a básica contagem de espingardas quando deu, finalmente, o corpo às balas.
Neste jogo do gato e do Rato (o trocadilho também pode ser lido em vice-versa e sem maiúscula), em que todos e mais alguns socialistas já tomaram a sua parte, há dois notáveis cuja quebra de silêncio (talvez mais do que o trabalho de bastidor) pode decidir o futuro do PS e do país a curto prazo: José Sócrates e, sobretudo, Jorge Coelho. Esperemos para ver.