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Vivemos hoje uma situação perversa: as maçãs que seguem as mais elementares regras morais, os mais básicos princípios de convivência, as maçãs que estimam um património comum que veio do sacrifício de tantos - a democracia, a liberdade, as instituições, enfim, tudo o que há de mais belo e excitante no sistema, que na sua origem serve para nos servir - parecem-se todas umas com as outras. São decerto maçãs diferentes, mas estão dentro do mesmo cesto.
Acontece que competem por serem vistas. Assim ordeiras, e ordeiras com todo o motivo para o serem, nunca darão tanto nas vistas como aquela outra maçã - a que não segue as regras morais e cívicas mais elementares, a que desrespeita as premissas da convivência, a maçã que afirma querer acabar com o cesto.
Em bom rigor, essa maçã está podre. Mas é justamente a podridão que a distingue das outras. Talvez tenha havido uma época em que tal distinção seria vergonhosa, a causa bastante para ninguém lhe pegar. Mas hoje isso não acontece.
O bem mais escasso da democracia é a atenção dos cidadãos, sobretudo a atenção no momento em que temos outro nome. Na altura em que somos votantes. Olhando para o cesto, a maçã podre é obviamente a mais atrativa, ou seja, a que mais capta a atenção, mesmo quando escandaliza. Temos de nos definir perante ela, é o pivô do nosso mal-estar público. Nenhuma outra maçã nos compromete dessa forma.
Na sua podridão, criou para si mesma regras que as outras não podem seguir. Embora também queiram captar o bem finito, por motivos óbvios, nunca diriam em cartazes "os ciganos têm de cumprir a lei" ou "isto não é o Bangladesh"; nem depois, quando confrontadas com a imoralidade das frases, lucrariam com a auto-defesa, evocando a liberdade de expressão. Ao ataque e à defesa, a maçã podre ganha atenção sem fim com a falta de escrúpulos.
Resta às maçãs maduras continuarem a sê-lo: firmes contra um jogo que não podem jogar, moderadas quando os tempos pediriam que se extremassem, fiéis às instituições que nos intermedeiam, elevadas perante discursos rasteiros e defensoras da grande maioria dos votantes - que querem estabilidade, civismo, liberdade, que querem descanso da podridão.
Manterem-se incorruptas quando o cesto tresanda por causa da maçã podre pode parecer ordeiro e até sensaborão, mas é na verdade um gesto radical de entrega à causa pública: garantir que vivamos a beleza da normalidade.

