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A ministra das Finanças e o ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social esfalfaram-se, ontem, durante a apresentação das linhas gerais do famigerado Documento de Estratégia Orçamental (DEO) para abraçar com carinho os portugueses. Usaram para isso a semântica, um instrumento que serve para estudar o significado das palavras, mas que, quando utilizado de forma desajeitada, pode transformar-se numa arma perigosa. As próximas eleições o dirão, mas creio que, do lado de lá, poucos serão os portugueses disponíveis para devolver o abraço fraterno à senhora ministra e ao senhor ministro. Há boas razões para isso.
Na verdade, o que ontem nos foi vendido é a continuidade da austeridade, mas de outra maneira. Vamos aos factos.
1) Vamos pagar mais IVA (subida para 23,25%, uma brutalidade). Era mentira, portanto, a garantia dada pelo Governo de que não haveria aumento de impostos. E para quem, como o Executivo, está apostado em criar emprego, percebe--se mal o alcance desta medida;
2) Vamos pagar mais taxa social única (de 11% passa para 11,2%), o que se traduz numa perda efetiva de rendimento;
3) A contribuição especial de solidariedade (CES) desaparece, mas vamos pagar uma nova taxa que, para a maioria dos portugueses, oscilará entre 2% e 3,5%. O ministro disse, contente: "Nenhum pensionista ficará pior". É semântica pura e dura: não ficam pior em relação ao que pagavam de CES, mas ficam pior porque pagarão uma taxa - e para todo o sempre - que não existia antes da CES;
4) O IRS não será desagravado antes de 2016;
5) Os cortes nos salários da Função Pública serão repostos nos próximos 5 anos. Resta saber que influência terá no vencimento de cada um a criação de uma tabela salarial única e uma tabela de suplementos salariais também única.
Isto é menos mau do que aquilo que tínhamos até agora? Sim, um bocadinho. Mas convém lembrar que, por detrás disto, estão vidas, pessoas, famílias. O sofrimento a que todos fomos sujeitos nos últimos anos está longe de ser compensado pela estratégia ontem conhecida. O aumento colossal de impostos continua a fazer dos meses verdadeiras maratonas. Em nome do respeito que tamanha empreitada merece, o Governo faz mal em usar a semântica e os eufemismos para evitar dizer o que tem de dizer: "Há aqui um ligeiro desagravamento da austeridade, mas, caros concidadãos, vamos ter de aumentar os impostos e criar novas taxas para que isto não derrape outra vez". Se fosse assim, talvez se tivesse evitado que, hoje, os portugueses tenham material fresquinho para comentar nos transportes públicos e nos cafés: mais um aumento de impostos, mais taxas para pagar. "Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma", ensinou Fernando Pessoa.
Não é mesmo perigosa o raio da semântica?