O problema de se mexer numa realidade eternizada, seja ela qual for, é sempre o mesmo: não vamos agradar a todos. Depois, haverá sempre fissuras que serão usadas para desqualificar esse movimento disruptivo. Como se fosse possível curar uma ferida profunda com um pedaço de algodão embebido em álcool.
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A revolução anunciada pelo Governo no setor da habitação não foge à regra: décadas de remendos e passividade não podiam ser apagadas, como por magia, por um programa que está longe de ter uma capacidade transformadora e regeneradora absoluta.
Certamente que as soluções, muitas delas apenas mediáticas, são demasiado ingénuas ou ambiciosas para serem materializadas, mas há, no essencial, um propósito saudável de combater uma fragilidade que não é apenas social e económica, mas também geracional. De resto, as lacunas no mercado da habitação estão intimamente ligadas a outros fatores de descrença: a progressiva erosão do sistema de ensino, que agrava as desigualdades entre quem pode procurar melhor e quem não tem alternativa; a demorada aceleração da valorização salarial, que nivela novos e velhos por baixo; e a excessiva concentração populacional em dois grandes polos urbanos (quase metade do país mora ou trabalha hoje no Grande Porto e na Grande Lisboa). Agitar o mercado da habitação implica, por isso, empreender outras reformas, tão ou mais profundas do que as que agora vamos conhecendo.
Mas da mesma forma que, há 20 anos, era assustador percorrer as ruas escuras e sem vida do Porto a partir das 21 horas (o turismo, alicerçado nos voos low-cost e no alojamento local, foi a vitamina certa para inverter esse quadro), agora que passamos para o outro extremo da equação não podemos ter medo de temperar o mercado, dotando-o de racionalidade e até de humanidade. Esta revolução não se faz numa semana. Nem num ano. Mas algum dia tinha de começar. Encaremos, pois, a ideia da mudança como natural e necessária. Sem dogmas nem espartilhos ideológicos. Discuta-se tudo. Mas faça-se alguma coisa.
*Diretor-adjunto