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Perguntaram-me como é aliar a escrita de inspiração à escrita de transpiração. E dizem-me que lhes parece que a escrita de transpiração, ou seja, o ofício de escrever, é excessivamente profissional e burocratizante para resultar em arte.
E eu respondo sempre de maneira diferente à mesma pergunta, não só porque por vezes o almoço foi muito pesado e não deixa espaço para digerir as melhores respostas, mas também porque é mais divertido dar respostas diferentes às mesmas perguntas. É o que os escritores fazem, inventar.
E inventam muito. Lê-se o que dizem sobre a escrita e deparamo-nos com um animal imenso, de tantos focinhos e angústias, quase todas contraditórias, que nunca escritor algum pode ter domado esse animal. É uma fera de safari e todos nos previnem para nunca sairmos do carro. Vejam a fera à distância e não lhe ponham a mão.
Recentemente perguntaram-me de novo: como alia a inspiração ao ofício? Eu podia inventar como antes inventei - e podia descrever a fera e os safaris e os perigos de afagarmos a escrita animal selvagem. E estaria perfeitamente bem. Mas preferi falar da vela.
Imaginei uma vela acesa num campo imenso, com erva rasteira e pouco mais. A vela é um ponto que iluminaria tudo em volta, mas no campo despido não cresce uma única árvore na qual reflectir a luz frágil da vela.
É uma vela contra a escuridão.
E imaginei um arquitecto que se aproxima da vela para construir um edifício. Delimita à volta dela os limites da luz, os limites da sombra, e traça nessa fronteira a planta de uma catedral. As paredes-mestras delimitam perfeitamente até onde a luz da vela chega.
E daí crescem as fundações, as paredes, entram os engenheiros, os operários, os varredores, a gente que entrega os materiais, os andaimes a toda a volta. Enquanto isto, a vela permanece acesa, ainda mais frágil do que antes porque estava solitária e descansada, e agora tem à sua volta azáfama e construção. A vela só ficará segura quando a altura da catedral a proteger o suficiente para que nenhuma rajada de vento a apague.
Passa-se o mesmo com a escrita. A vela é a inspiração, a luz da ideia inicial. A catedral é o ofício, o labor - que exigiu cuidado dos trabalhadores, todos exclusivamente feitos de mim, todos exclusivamente eu, no esforço de construir algo sólido e belo à volta de uma pequena ideia que de outro modo podia ter esmorecido.
No fim, o leitor não vê nada disto. Com sorte, vê um belo livro dentro do qual, depois de construído o suficiente para proteger, se acenderam muitas outras velas.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)