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A comédia de Trump continua trágica. Voltou mais poderoso, mais errático e menos limitado pelo cargo que ocupa. Voltou mais ele mesmo, como se a Sala Oval fosse um estúdio de reality show. A própria Casa Branca e o Departamento de Estado tentam contrariar o lunatismo do presidente, sem efeito.
Nas semanas desde a tomada de posse (três semanas, três anos, três décadas?), assistimos à farsa da política do espectáculo, ao conluio entre o Governo e a Big Tech, com Musk à cabeça, e que cabeça aquela, e o bracinho também; assistimos ao desnorte das medidas alfandegárias, o perdão dos 1500 atacantes do Capitólio, enfim, não teria espaço para tantas decisões, muitas das quais simples actos de fala, como é o caso da mudança do nome do golfo do México.
No domingo passado, Trump voltou ao ataque. No Air Force One a caminho da Super Bowl, Trump discorreu sobre o Canadá, que “não é bem um país”, mais uma dependência dos EUA e sobre Putin, com quem fala ou não fala. Ao seu lado, dois funcionários empunhavam um cartaz mal impresso, de design infantil, como se fosse uma apresentação escolar, onde se lia em letras gigantescas, desproporcionais: Golfo da América.
Reforçou sobretudo a ideia da conferência de imprensa com o criminoso Netanyahu, dias antes. A redução da faixa de Gaza a um negócio imobiliário: “Pensem em Gaza como um grande terreno imobiliário. Os EUA vão comprar Gaza e calmamente, sem pressas, desenvolver o empreendimento e estabilizar o Médio Oriente. Gaza está em escombros, queremos desenvolvê-la. Viverão em paz e harmonia pela primeira vez em centenas de anos.”
O projecto de Trump torna a guerra genocida de Netanyahu num mero preâmbulo. Trump considera que os próprios palestinianos aceitariam viver noutros países, acha que esses outros países os aceitariam, e que alguns palestinianos, mas só alguns, prefeririam viver numa Riviera do Médio Oriente.
Trump não sabe com certeza o preço da terra e do sangue. Nem tem qualquer ideia de que aquela faixa é um lugar santo para quem nela viveu e morreu. Não suspeita que naquele cemitério se ouça o chamamento dos mortos. E que os palestinos nunca aceitariam o êxodo da sua terra sagrada.
Trump também não se interessa pelas advertências da ONU, que classifica qualquer deslocação forçada de pessoas como limpeza étnica. Nós até podemos desvalorizar a “visão criativa” (palavras de Netanyahu) e considerar que se trata de apenas mais uma fantasia do presidente norte-americano. Mas basta conferir o historial de Trump para perceber que ele sempre foi bem capaz de tornar as fantasias realidade. Sim, a comédia pode ser trágica.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia