A constelação turístico-cultural e a economia criativa nas ABD
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Quem visita o chamado interior do país e as suas áreas de baixa densidade (ABD) não pode deixar de ficar surpreendido com a crescente visitação turística, a explosão de eventos de todos os géneros que aí se realizam e, em consequência, a animação da economia e do comércio local. A questão essencial nesta altura é saber se esta constelação turístico-cultural, em conjunto com as suas múltiplas ramificações na economia local e regional, são devidamente refletidas e exploradas para articular e estruturar novas economias de rede e aglomeração, em especial, transportando para as fileiras económicas e as cadeias de valor da economia produtiva das ABD toda a criatividade e inovação que aquela associação virtuosa entre turismo e cultura nos pode proporcionar.
Dito isto, não há, em boa verdade, uma resposta única para esta questão fundamental. Por várias razões. Em primeiro lugar, a grande volatilidade da procura externa que é própria do mercado turístico-cultural, em segundo, o limiar mínimo de escala e massa crítica de recursos que é necessário reunir nas ABD, em terceiro, os problemas levantados pela sazonalidade e intermitência destas atividades, em quarto, o frágil tecido empresarial nas ABD e a sua baixa intensidade-rede, finalmente, as singularidades e especificidades da economia das atividades criativas e culturais, em especial, o seu particular simbolismo histórico-cultural, a sua maior ou menor capilaridade social e a natureza das interações com as outras dimensões da sociedade. Seja como for, este boom turístico e esta explosão de eventos culturais e criativos são um excelente input de desenvolvimento para as ABD e convertem a economia criativa, em sentido amplo, como um instrumento fundamental de inovação e coesão territorial.
Neste contexto, e estou a pensar nas redes urbanas e comunidades intermunicipais, a economia criativa pode ser definida como um ecossistema de atividades culturais e criativas e esta definição está muito próxima daquela que os ambientes naturais e os respetivos ecossistemas representam para todos os seres vivos. A ideia de ecossistema natural é, de resto, uma excelente analogia para entendermos a arte, a cultura e as atividades criativas, bem como todo o seu universo simbólico e imaterial. Na verdade, o meio ambiente, por via do seu metabolismo e capilaridade particulares, favorece a existência e o desenvolvimento de diversas formas de vida, a sua biodiversidade e interações múltiplas. Do mesmo modo, no plano da economia criativa, o ambiente de liberdade, tolerância e criatividade favorece e estimula o desenvolvimento da diversidade cultural, o florescimento das artes e todas as atividades ligadas à ciência e tecnologia.
Num plano mais analítico, podemos dizer que a economia criativa visa, por um lado, a espacialização da cultura e, por outro, a culturalização do espaço, por intermédio de três dimensões principais que aqui sublinhamos: a simbólica, a económica e a política.
No plano simbólico, a constelação dos ativos imateriais e intangíveis engloba tudo o que ultrapassa o limite estritamente funcional da sociedade e seja portador de muitos sentidos e significados, a saber: valores e conhecimentos, celebrações e festividades, manifestações artísticas, artes e ofícios, culinária e gastronomia, livros e paisagens literárias, artes performativas e muitas outras formas de expressão e produção artística e cultural que preenchem a grande via simbólica entre os seres humanos. O acesso pleno a bens, serviços e equipamentos culturais, assim como a garantia da livre manifestação do pensamento e das expressões artísticas e culturais, são direitos humanos fundamentais que ampliam a autonomia, o protagonismo e a dignidade dos indivíduos e contribuem para gerar empregos, rendimentos e riqueza que são indispensáveis à coesão social dos territórios das ABD. Assim, consolidar a constelação turístico-cultural e a sua intensidade-rede nas ABD é fundamental para afirmar a coesão dos territórios e a dignidade do desenvolvimento humano. Esta é a grandeza da economia criativa, da arte e da cultura.
No plano económico, as atividades da economia da cultura, em sentido estrito, e da economia criativa em sentido largo, crescem e desenvolvem-se em interação profunda com praticamente todas as dimensões da condição humana e da vida em sociedade. Cada um dos segmentos da economia criativa possui especificidades que são próprias das respetivas cadeias produtivas. Assim, no seu conjunto, a dimensão económica inclui a pesquisa e a criação, as matérias-primas e os meios de produção, a qualificação e formação profissional, as diversas linguagens artísticas, os processos de produção, circulação, distribuição e comercialização, as infraestruturas de acesso e difusão, o marketing e o branding territorial, o consumo e a fruição, as várias modalidades de engenharia financeira, os dispositivos regulatórios e os aparatos institucionais de cada um dos setores da economia criativa. Todos estes aspetos precisam de ser devidamente compreendidos pela economia política e pelas políticas públicas da economia criativa, pois as interações entre as fileiras económicas convencionais e as cadeias produtivas de cada linguagem artística e de cada setor da cultura são um campo imenso de desenvolvimento e prosperidade para as ABD. As políticas públicas, ao trazer a cultura para o espaço público e transformar o ambiente urbano para usos mais inovadores e
diferenciados, são uma dimensão crucial da economia criativa e delas depende o sentido e o ritmo da intensidade-rede dos seus vários segmentos.
No plano político é necessário salientar o papel crucial do Estado e, também, da administração local, na formulação, desenvolvimento e investimento em políticas públicas de cultura e economia criativa. Hoje, a observação direta em muitos municípios permite-nos afirmar como são extraordinariamente pertinentes os investimentos em museus interativos, centros interpretativos e centros culturais, como é fundamental a incorporação da arte e da cultura na educação e capacitação nas diversas linguagens artísticas, como são decisivas as linhas de apoio e incentivo à cultura e à atividade criativa, e como é decisiva a regulação dos mercados no que diz respeito à promoção do acesso e do consumo, de que são bom exemplo, as redes nacionais itinerantes de cultura e arte contemporânea. Se as políticas públicas da economia criativa cumprirem estes objetivos, mais universal é o acesso à cultura, maior é a difusão e o desenvolvimento das linguagens artísticas e da produção cultural em geral e maior é a capacidade de inovar e lidar com as novas tecnologias aplicadas às artes e à cultura. Se assim for, e quanto mais consumidores e produtores de cultura existirem, mais forte e dinâmica se torna a economia criativa e mais se expandem os horizontes dos seres humanos, as suas oportunidades no campo profissional e, certamente, as condições de desenvolvimento das ABD.
A propósito de conexões entre cultura e desenvolvimento nas áreas de baixa densidade (ABD) recomendo a leitura do Jornal de Letras (JL) de 12 de junho, em especial a reportagem intitulada Em busca da arte ao longo do rio Mira, mas, também, o texto de Gabriela Canavilhas sobre a grande relevância dos festivais de música como instrumento fundamental da economia cultural e criativa dos territórios. No primeiro caso, trata-se de um projeto colaborativo para a regeneração do rio Mira, denominado Guardiões do Mira, com o apoio da DG Artes e do programa Odemira Criativa. O projeto contempla um programa de residências artísticas em que oito artistas vão refletir sobre o rio em quatro associações do concelho de Odemira. Como nos diz a curadora do projeto, as caminhadas ao longo do rio vão servir para refletir sobre a ecologia do lugar e a ecologia das relações sociais, bem como novos momentos de mediação e experimentação social que serão acompanhados por um curador convidado e um especialista local. As pessoas deixaram de olhar para o rio como um lugar próximo das suas vidas, são precisamente essas relações de afetividade entre água, biodiversidade, solo e comunidade que importa fomentar. No final, haverá, também, um momento para refletir sobre o
processo de trabalho dos artistas convidados e os objetos artísticos que nasceram durante a residência de dois meses nas associações socioculturais do concelho de Odemira.
No que diz respeito aos festivais, a transversalidade cultural pós-moderna aproxima as expressões artísticas, mistura-as, contamina-as, e a conjugação das diversas artes dinamiza a economia criativa dos territórios de baixa densidade (Gabriela Canavilhas). Desde logo, os festivais reinventam os lugares e os lugares reinventam os festivais e esta conjugação feliz multiplica os públicos e o fluxo de visitação, gerando encontros muitas vezes improváveis entre os lugares e as diversas linguagens artísticas. Em seguida, o êxito e o prestígio de muitos eventos acabaram por justificar a construção de novos equipamentos culturais e o recrutamento de profissionais para as atividades culturais. Outros efeitos externos positivos dizem respeito à reabilitação e restauro de património cultural, aos novos programas educativos nas escolas, às residências artísticas, aos concursos e prémios para jovens artistas, às encomendas para renovar repertórios, a um marketing artístico e cultural mais imaginativo que acaba por favorecer a angariação de mais recursos via mecenato e crowdfunding.
À semelhança dos serviços prestados pelos ecossistemas naturais, o ecossistema turístico-cultural presta serviços inestimáveis à vida das pessoas e muitos impactos positivos da cultura podem ser observados na qualidade de vida e no bem-estar coletivo. Neste contexto, a constelação turístico-cultural e a economia criativa terão um valor estratégico inestimável e as redes e itinerários do património natural e cultural serão vistos como parte integrante da diversificação da economia desses espaços. Resta a questão central da intermitência versus permanência, isto é, a descontinuidade das atividades culturais e criativas e, em consequência, as sucessivas mediações e intermediações que é preciso imaginar e reinventar para acrescer a intensidade-rede das conexões entre cultura e desenvolvimento e, assim, reduzir o gap entre intermitência e permanência.
No resto, as nossas ABD têm muitos signos distintivos que guardam a memória histórico-cultural dos territórios, apenas esperam por um bom argumentista e uma encenação a condizer. Estão todos convidados para redigir o próximo script da sua região.