Passos Coelho afirmou que temos de adaptar a Constituição ao país sem esperar pelo fim da legislatura. De imediato, as vozes que defendem sempre aquilo que está (e como está) sentenciaram a inutilidade dessa intenção: "não vale a pena", asseguraram em uníssono, "as soluções são possíveis à luz da actual lei fundamental".
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Não percebo: sempre que se tenta inovar qualquer coisinha em vez de retrilhar os caminhos já inocuamente calcorreados é certo e sabido que algum sacerdote do conservadorismo constitucional vai condenar a iniciativa. Já ouvi clamar por supostas inconstitucionalidades a propósito da substituição de gestores públicos, de intervenções do Tribunal de Contas, da possibilidade de despejo de inquilinos em casas camarárias, do sindicalismo dos magistrados, da legislação contra a corrupção, do ensejo de libertar as ruas das cidades da chantagem coactiva dos "arrumadores", da faculdade de se controlarem as nomeações políticas, etc.
Em boa verdade, quase tudo o que se tenta reformar em Portugal parece ser inconstitucional ou está situado nessa perigosa e sinuosa fronteira - no entanto, são precisamente os fariseus do regime sempre dispostos a denunciar conjecturadas inconstitucionalidades em tudo o que mexa, os mesmos que recusam adaptar a Constituição aos tempos que correm, já que a têm como uma espécie de Talmude inamovível.
2 . A nossa Constituição foi elaborada em 1975-76, durante a turbulência do PREC, e recebeu uma indelével marca de nascimento ideológica apenas explicável nesse contexto histórico. O esforço de a situar num plano digno de um país europeu, retirando-lhe o seu frentismo sul-americano originário, compreendeu sete revisões constitucionais. Estas oscilam entre transformações essenciais do cariz do regime (as de 1982 e 1989) e as alterações de ocasião: as que foram impelidas pela adaptação aos tratados europeus, mas que obedeceram à tão portuguesa premissa do "já agora", com mudanças avulsas de um ou outro ponto que casavam com o interesse oportunista de algum partido.
O resultado final é pouco recomendável - cada revisão foi acrescentando um ar da sua (pouca) graça, transformando a actual Constituição num documento incoerente feito de pedaços contraditórios entre si, politicamente datados, artificialmente unidos num todo desarmónico. A actual Constituição assemelha-se ao monstro criado pelo dr. Frankenstein, fabricado a partir de porções de diversos corpos, costuradas sem qualquer cuidado visível de proporção ou de concordância global com a realidade do país.
Evidentemente, não é apenas por culpa desta Constituição que Portugal não consegue sair da cepa torta e ameaça converter-se num estorvo aborrecido para a Europa (seguindo o exemplo grego) - mas não me parece política e intelectualmente honesto separarmos a Constituição do problema em que Portugal se tornou.
3. A revisão constitucional é necessária. Não é possível redefinir o sistema eleitoral no sentido do voto preferencial mantendo-se a actual redacção do art. 149.º. Não faz sentido continuar a defender as regiões administrativas conservando-se os artigos 255.º e seguintes - autênticas "normas constitucionais inconstitucionais" já que, na prática, desmentem a implementação do princípio que enunciam. É difícil termos uma política ambiental consequente enquanto permanecer a amálgama confusa de princípios cristalizados no art. 66.º. Com a actual redacção constitucional, dificilmente o Parlamento poderá controlar as nomeações políticas, o sistema de justiça permanecerá entorpecido pela confusão endémica entre os vários conselhos superiores e os papéis que cada magistratura gosta de atribuir a si própria.
Provavelmente, até precisávamos de um novo paradigma constitucional. Todavia, é urgente definir um modelo congruente e actual que permita solucionar os problemas que este regime nunca resolveu em mais de 35 anos. O que não podemos é dizer que esta Constituição tolera quase tudo para, depois, perante soluções concretas, a torto e a direito, surgirem os habituais anátemas de "inconstitucionalidade".