Quem pensar que a vingança do novo acordo ortográfico se vai jogar dentro das quatro linhas do Mundial do Brasil pode começar a refazer o mealheiro das poupanças e economizar para a compra de substâncias anti-ilusão. Sei que, como no futebol, muitas vezes se joga aos pontapés com a língua. Mas num jogo entre Portugal e Brasil no país irmão, só com caldos de esperança infinita podemos alimentar sonhos vitoriosos. A nossa única esperança é mesmo Scolari: numa final entre Portugal e Brasil, é ele que nos pode devolver o título internacional que nos subtraiu quando só resolveu ceder a geração Mourinho-2004 após "bullying" insistente de todo o país. O que poderia ter sido a nossa selecção de 2004 caso tivesse sido programada para jogar em conjunto e não agrupada à última hora, após a primeira derrota, na tentativa de salvar uma fase de grupos? Contra este Brasil ainda tenho esperança, nem que seja até ao final do período de transição do acordo ortográfico em 2015. Seria da mais elementar justiça, Scolari deve-nos essa.
Corpo do artigo
Já contra a Alemanha o assunto é outro. Contra a selecção germânica podemos jogar colectivamente pela e com a nossa revolta. Verdadeiramente amarrados às suas políticas hegemónicas, gritaríamos pela libertação ao pontapé, com a elegância que sempre mostrámos quando os recebemos mas sem a deferência com que nos curvámos. Sem futebol directo. Às vezes em contra-ataque mortífero, repleto do veneno destes "morenos do Sul". Seria como se entrássemos todos no campo, a cortar a direito com a nossa Constituição às costas e a mostrar os dentes aos "panzers": no Brasil não há cá euros! Já contra os EUA são dólares e, sabemos, não é uma moeda miúda.
Convenhamos que jogar e ganhar contra os donos do Mundo numa modalidade que eles próprios desconhecem acaba por ser uma vitória muito terrena. Se não ganharmos aos EUA será uma desonra e, desde já, proponho que se desviem fundos em ajuste directo para academias de basebol no novo complexo do Jamor. Na realidade, os donos da Europa são eles (como ficará claro quando a Europa se auto-suspender, mirrando, até às eleições americanas em 2016). Não há razão para não lhe mostrarmos os dentes. Ao segundo jogo e após duas vitórias sobre os proprietários da Europa e sobre os donos do Mundo, teríamos o mundo do futebol aos nossos pés. Seria a vingança possível, romance à flor da relva, executada em duas penadas.
Jogar contra uma selecção africana como o Gana é jogar simultaneamente contra o nosso complexo de superioridade. É como se de repente insuflássemos o ego, sentindo que a nossa vida de prosperidade na pobreza é naturalmente superior à natureza indígena do Terceiro Mundo, como se - à revelia do mal que alguns "superiores" nos têm feito passar - não aprendêssemos que a desconsideração é um sentimento bem feio. E se é certo que Portugal jogará todos os jogos para ganhar, este seria aquele que menos me custaria perder. Sobretudo se o terceiro jogo já nada definisse, sinal de que tínhamos despachado os "superiores" com jogo doutorado e que, eles próprios, se tinham espalhado ao comprido com os "naturalmente" inferiores ganeses. Nada me daria mais gozo do que ver Portugal e Gana nos oitavos-de-final. Face a uma Alemanha arrogante (essa, exactamente, a que nos comparou com a Arménia) não me parece nada impossível que o Gana os leve ao tapete.
Um Mundial neste Brasil não pode passar ao lado das assimetrias. Veremos, aos primeiros dias, se as assimetrias deste Brasil deixarão passar o Mundial. A greve no metro de São Paulo, os tumultos dos indignados, as convicções daqueles que não entendem investimentos duvidosos a conviver com a fome a céu aberto, as crianças vítimas em Fortaleza (que podemos ver no "Preço do Mundo" de Mikkel Keldorf), todo um país que disputa a vida para além da Copa. Não duvido que o descontentamento ou o esquecimento corra proporcional às derrotas e às vitórias da selecção brasileira. Para Portugal, uma bela oportunidade de ver e olhar, projectar o que quer do seu futuro num palco de sonhos. Perdidos no acordo ortográfico, no eixo do mal europeu ou no "rating" das agências norte-americanas, não temos que perder nas entrelinhas. Podemos até lavar alguma roupa suja, afinal é a copa! Se quisermos sangue, perguntemos outra vez à Argentina e Inglaterra sobre as Malvinas. Mas não me venham dizer que a vingança não se pode servir em romance.