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No meio de mais uma refrega da tempestade que ameaça naufragar o país, e que se saldou num lastro adicional para a nossa nau em consequência do aumento dos juros da dívida pública, o Governo anunciou o adiamento do concurso público para a ligação do TGV entre o Poceirão e Lisboa. Diz o Governo que espera por melhores dias para lançar novo concurso, o que quer dizer, na prática, que ficará para as calendas, porque, a não ser que haja petróleo no Beato, não se imagina quando esses dias irão chegar. Por isso mesmo não é sequer relevante questionar outras coisas. Não é relevante questionar se, porventura, o Governo estará interessado em beneficiar algum dos consórcios interessados nesta obra pública, ou protestar contra o anúncio de que irá socorrer-se mais uma vez de fundos de coesão destinados a obras públicas que beneficiariam o Norte para "tapar o buraco" de uma obra na capital do Império. Infelizmente, já ninguém pode levar a sério este Governo, que se diz e contradiz de acordo com as fases da lua, e não tem coragem de confessar que já não há dinheiro para as suas fantasias.
Face à gravidade da situação, há muito quem diga que uma pronta intervenção do FMI teria vantagens para Portugal. De facto, e atendendo à conjuntura que vivemos, essa intervenção é premente, porque o Governo não tem coragem para tomar as medidas que se impõem para controlar a despesa pública, que continua a resvalar. A verdade é que Portugal foi o único de entre os PIGS que se recusou a introduzir medidas de contenção da despesa primária e, com a economia condenada a um crescimento anémico, já não há dinheiro para sustentar a situação. Tudo isto só é tolerado porque, graças à máquina de propaganda, a "common wisdom" considera que Sócrates é um homem corajoso mas, salvo melhor opinião, a coragem de um governante não se deixa confundir com bravata; mede-se pela sua capacidade para enfrentar os problemas e para consciencializar os cidadãos dos riscos, impondo as soluções dolorosas que possam impedir o naufrágio.
Por outro lado, e na iminência desse naufrágio, espanta-me que muitos socialistas, com responsabilidades no partido e até no Governo, conhecendo a gravidade da situação, reconhecendo em privado que esta não está a ser devidamente enfrentada, e chegando mesmo a referir que José Sócrates se transformou numa parte do problema, não tenham a coragem para dizer, publicamente, que o rei vai nu, entretendo-se, em vez disso, a demonizar a Oposição, chegando ao ponto de a responsabilizar pelo aumento do "spread" da dívida pública. Para isso, já bastava Alegre, para quem a origem do mal está nas empresas de "rating", no Ecofin, no Banco Central Europeu, em Durão Barroso, nas políticas da senhora Merkel, nas propostas do PSD, no silêncio de Cavaco…
Por falar em Cavaco Silva, que continua a adiar o anúncio da sua recandidatura, bem preciso era que o presidente tivesse coragem para esquecer essa sua agenda, e se dirigisse ao país para explicar a situação, que conhece muito bem no plano teórico e prático, e que lhe tem vindo a ser relatada em detalhe, nos últimos dias, por pessoas tão credíveis como o Governador do Banco de Portugal. Hoje, já não se trata de ser mensageiro das más notícias. O que se exige do presidente da República é que esqueça as parábolas e alerte os portugueses para o risco de um colapso financeiro que, para além de outras consequências, implicará que a política interna do país venha a ser ditada do exterior, o que é uma ameaça à soberania nacional de que é guardião.