A justiça é uma das quatros virtudes fundamentais identificadas por Platão e popularizadas pelo cristianismo. Durante muito tempo a justiça não se destacou dessas outras virtudes (prudência como sabedoria, temperança e coragem).
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Num livro recente (Representing justice), dois autores (Resnik e Curtis) explicam como, após a idade média, a justiça se tornou a virtude pública dominante, dos edifícios aos livros, da pintura à escultura.
De todas as virtudes, a justiça era a mais suscetível de legitimar o uso da força pelo poder. É por isso que a violência é legitimada pelo Direito na estrita medida da sua associação à justiça. A própria iconografia da justiça explica-nos porquê. Na sua representação mais comum, traz a espada numa mão, uma balança na outra e os olhos vendados. Não existe justiça sem a força para a impor. Mas também tem de ser justa, no sentido proporcional ao que cada um merece. Por último, a venda não significa uma justiça cega, mas sim uma justiça independente do poder e estatuto. A igualdade perante a lei implica a "submissão" da lei à justiça. É por isso que uma interpretação e aplicação do Direito que separe a sua forma da ideia de justiça o reduz a um mero exercício de poder. A forma, quando manipulada para impedir os fins da justiça, perde a sua objetividade e transforma-se num instrumento dos poderosos.
Podemos discutir sobre se as regras devem ser de um tipo ou de outro, mas o que não podemos é ter umas regras para a uns e outras para outros. Foi este receio que a recente Diretiva da procuradora-geral da República veio suscitar. O problema não é a hierarquia interna no Ministério Público que aí se reafirma. O problema reside, por um lado, no receio da politização do Ministério Público, que a forma como a anterior PGR foi substituída fez regressar (independentemente de qualquer juízo sobre a atual PGR) e, por outro lado, na opacidade que a diretiva introduz quanto às eventuais intromissões superiores nas decisões dos procuradores. Num contexto hierárquico a transparência dessas intromissões é necessária para limitar os receios de uma aplicação seletiva do Direito.
Este é, aliás, o principal desafio do nosso sistema de justiça. Ouvimos, com frequência, que é um erro avaliar o sistema com base nos processos complexos e que, fora destes, o sistema funciona razoavelmente bem. O problema é a tendência para todos os casos com personagens poderosos se transformarem em casos complexos... Quando assim é, estamos perante exceções que têm um impacto na avaliação de todo o sistema. É a diferença de tratamento, e não apenas a falta de eficácia, que coloca em causa a necessária correspondência do sistema de justiça com o ideal de justiça.
Professor universitário