A crise do Presidente
Enganamo-nos redondamente! Para surpresa geral, a comunicação ao país do Presidente da República, nesta quarta-feira, não dedicou uma única palavra à fórmula de governação que o primeiro-ministro lhe apresentou no final da semana passada e que tão penosamente fora engendrada pelo PSD e o CDS na expectativa de assim satisfazerem as exigências de solidez e perenidade que oportunamente tornou conhecidas.
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Em vez de dizer sim ou não, recusou eleições imediatas e exigiu um "compromisso de salvação nacional" a todos os partidos que assinaram há dois anos o memorando de entendimento com a troika. É claro e expresso o intuito de envolver o maior partido da oposição no apoio a políticas que, todavia, sempre desprezaram as suas contribuições, mas desta forma se prolonga e amplia a tão deplorada "crise política" cuja solução se julgava iminente.
O Presidente da República é competente para demitir o Governo, a fim de "assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas" (número 2 do artigo 195.º da Constituição da República). E, conforme a sua livre apreciação, pode dissolver a Assembleia da República e convocar eleições legislativas antecipadas (art. 172.º da C. R. P.) exceto no primeiro e no último semestre do mandato presidencial e durante a vigência do estado de sítio. São estas atribuições, estranhas aos regimes parlamentaristas, que justificam, em Portugal, a eleição do Presidente por sufrágio universal e direto. Não existe portanto qualquer desconformidade entre o modo como procedeu o Presidente e o que dispõe a Constituição. A surpresa que gerou resulta apenas da flagrante inversão da orientação oficial, reiterada desde o primeiro mandato, quanto à amplitude dos poderes presidenciais. Uma compreensão que, até à passada quarta-feira, preconizava a doutrina mais restritiva e parlamentarista de toda a nossa história democrática. Poucas horas antes de conhecer o pedido de demissão de Paulo Portas, o Presidente ainda declarava que o Governo só cairia se os partidos descontentes conseguissem aprovar uma moção de censura na Assembleia da República, assim desconsiderando as atribuições que a Lei Fundamental lhe comete nessa matéria! A confusão gerada na Imprensa internacional quanto ao sentido e alcance da última comunicação ao país é um reflexo anedótico deste comportamento ambíguo e errático.
É verdade que o apelo presidencial não poderá ser descartado com a mesma facilidade e candura com que foi feito. Mas seria útil ter esclarecido por que razão uma ideia tão séria e ponderada como o "compromisso de salvação nacional" não ocorreu muito mais cedo, em circunstâncias comparáveis com as atuais. Por exemplo, quando o Presidente deu posse, em 2009, ao Governo minoritário de José Sócrates em plena crise financeira internacional. Ou mais tarde, em 2011, depois do programa de ajustamento aceite pela União e o Banco Central Europeu ter sido chumbado na Assembleia da República, precipitando a demissão do primeiro-ministro e a iminência da bancarrota. Ou apenas há um ano, quando o descrédito dos cortes extraordinários na despesa pública suscitou severa advertência do Tribunal Constitucional e a taxa social única ameaçou a sobrevivência da coligação governante. Porquê só agora, quando faltam alguns meses para a conclusão do programa de resgate e a avaliação global das políticas governamentais já não tarda? Qual a premência de um compromisso "de salvação nacional" que antecipa desde já a morte de um Governo que ainda conta com apoio maioritário no Parlamento e foi reconfigurado segundo a "fórmula" que o Presidente lhe prescreveu? Com que legitimidade são previamente isentados o PCP e o BE de um imperativo patriótico de "salvação nacional"?
O "pacto" peca por tardio ou prematuro. Só a iminência de eleições legislativas lhe daria agora um sentido útil, o que o Presidente todavia recusou. Com ou sem "pacto", é do pluralismo político e do debate democrático que surgirão oportunamente as respostas aos problemas do país.