Portugal está numa das encruzilhadas mais graves da sua história contemporânea. Com uma dívida externa, uma dívida pública, um défice orçamental e uma taxa de desemprego recordes, os maiores de sempre da história conhecida da nossa vida colectiva, foi obrigado a pedir ajuda externa como forma de impedir o colapso do país.
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É esta comunidade em concreto que, nos últimos 16 anos, foi governada pela actual maioria governamental. Oito anos em regime de maioria parlamentar absoluta.
É esta comunidade em concreto que coabita com a liderança do político que mais anos governou Portugal em cargos executivos desde 1900. Salvo erro ou omissão, só Oliveira Salazar esteve mais tempo no poder. O actual líder do executivo nacional é primeiro-ministro há seis anos e foi ministro e secretário de Estado durante sete anos nos governos de António Guterres.
Paradoxalmente, é José Sócrates quem centra todo o seu discurso político eleitoral numa mensagem essencial: o descalabro do país deve-se em exclusivo a várias acções consertadas, quase conspirativas, contra a sua governação. Portugal está de rastos mas ele e o seu executivo não têm responsabilidade nenhumas nessa condição!
A culpa é da crise financeira americana, da má governação da União Europeia, de Cavaco Silva, do PSD de Passos Coelho e, um dia destes, quem sabe, do Rato Mickey e do Búfalo Bill.
É de toda a gente menos de ele próprio e do resultado das suas políticas. Aliás, com uma enorme capacidade de contorcer a realidade, não se inibe de afirmar que a situação de rotura anunciada se deve ao facto de nas últimas semanas não ter sido aprovado o seu quarto programa de austeridade em escassos nove meses.
Mas não há milagres em democracia e uma vez assente a espuma este exercício delirante cai por terra. Cavaco Silva, ao contrário do que agora apregoa o primeiro-ministro, foi um aliado institucional permanente do Governo durante os cinco anos do seu primeiro mandato. Aqui e acolá até talvez excessivamente permissivo. O PSD, por sua vez, com uma tolerância talvez também exagerada, aprovou dois orçamentos de Estado e três programas de recuperação económica e financeira. Todos eles restritivos e penosos para os cidadãos. Não podia ir mais longe na solidariedade de Estado.
Para além disso, sejamos rigorosos, quem reprovou formalmente o último programa de contenção - o famoso PEC 4 - não foi o PSD, mas sim toda a oposição. CDS, PCP, PEV, BE e PSD. Ou seja, dois terços da representação parlamentar. Contudo, quem verdadeiramente reprovou esse programa, cuja recusa hoje é delirantemente valorizada, foi tão-somente José Sócrates. Ele próprio, e hoje parece evidente, de forma deliberada e calculista.
Reprovou-o quando afrontou o presidente da República a quem não avisou previamente da decisão que ia tomar, quando faltou à verdade no Parlamento na véspera do seu anúncio, quando negociou com Bruxelas, até aos mais ínfimos pormenores, nas costas de agentes económicos, parceiros sindicais e cidadãos em geral.
E não o reprovou por acaso. José Sócrates sabia melhor do que ninguém que não podíamos suportar mais as taxas de juro que pressionavam a nossa dívida, sabia que o sistema bancário estava à beira da derrocada, sabia que muitas empresas públicas estavam em risco de deixar de pagar salários. Assim nada mais óbvio do que provocar uma crise, atirar responsabilidades para cima da oposição e tentar salvar-se na confusão que envolve o discurso baralhado ligado à antecipação de eleições.
É verdade que existiram factores externos que pressionaram a nossa vida colectiva, mas aligeirar em absoluto as responsabilidades como o está afazer o ainda primeiro- ministro é um injusto atestado de menoridade intelectual que se está a atirar para cima de todos nós.
Oxalá todos o percebam a 5 de Junho. Oxalá entendam que não estamos unicamente a falar do bem-estar de todos nós. O que está em jogo é igualmente a qualidade do nosso regime democrático, em que não pode valer tudo para manter o poder.