A curadoria de um território-rede-desejado (I) Turistificação, patrimonialização e estetização da paisagem
Muitos sinais distintivos do nosso património natural e cultural já foram objeto de prestigiadas e justas classificações por parte de algumas instituições internacionais. No âmbito da ONU refiro a UNESCO e a FAO, no quadro europeu a Comissão Europeia e o Conselho da Europa que, em conjunto, trouxeram à luz do dia muitos exemplares únicos do nosso património natural e cultural, a maioria dos quais já consta da agenda mediática, cultural e turística. Entretanto, a multiplicação dos dispositivos técnico-digitais em estreita associação com a difusão das artes e ambientes digitais transformou estes signos distintivos em exemplares únicos de patrimonialização e estetização da paisagem que a economia do turismo aproveita em múltiplas formulações socio-antropológicas: a reinvenção do artesanato e de velhas tradições, a folclorização de usos e práticas antigas, a culturalização de crenças e rituais, a renovação do génio e do espírito dos lugares. O turismo aproveita para acrescer o fluxo e a visitação e os exemplos já aí estão: os percursos de natureza, os centros arqueológicos, os lugares de culto e peregrinação, os roteiros de artes da paisagem, a observação de endemismos locais, os mercados de nicho como o enoturismo e o olivoturismo, os terroirs como lugares únicos do património natural, o turismo rural em condomínios de aldeia, os centros de artes e ofícios tradicionais, os centros interpretativos da história local, entre outros. No fundo, temos à nossa disposição uma oportunidade única de associar os processos de turistificação, patrimonialização e estetização da paisagem e através da sua digitalização inteligente abrir uma via rápida para a reterritorialização de áreas de baixa densidade (ABD), desta vez com mais fluxo do que stock. Esta associação virtuosa abre caminho para o que poderíamos designar como uma nova geografia das interfaces territoriais das ABD.
Olhemos, então, para o nosso espaço-território de uma perspetiva mais sistémica e transdisciplinar e procuremos inverter a ordem dos termos que ocupam esse domínio, ou seja, alterando a posição relativa das nossas apropriações e representações do espaço-território. A lista que se segue forma uma matriz de perspetivas e escalas de observação que considero fundamentais para compor uma constelação do espaço-território, o quadro necessário para desencadear uma série de atos criativos de delimitação, definição e produção de um espaço-território mais compósito e complexo:
- Os sistemas produtivos locais, as produções com DOC e IGP e a bio regiões,
- As áreas de paisagem protegida, o capital natural e os seus sistemas de gestão,
- Os mitos e os lugares de culto e peregrinação,
- A memória histórica, os roteiros e narrativas do património cultural,
- As paisagens literárias, a historiografia e a toponímica local, as aldeias históricas,
- Os terroirs vinhateiros e os montados alentejanos como espaços criativos,
- A arquitetura e a qualidade do espaço público urbano, periurbano e suburbano,
- A arte pública e ecológica e sua articulação com os bens comuns da economia circular,
- Os ecossistemas agroflorestais e paisagísticos e os seus bens comuns,
- As interligações entre eventos criativos, economia produtiva e comunidades locais.
Quero crer que os valores patrimoniais e paisagísticos, valorizados pela arte e a cultura e coadjuvados pela ciência e a tecnologia irão promover cadeias de valor eticamente e socialmente responsáveis. Neste sentido, disciplinas como a arquitetura paisagística, a engenharia biofísica, a economia ecológica e a agroecologia apoiadas pelas tecnologias digitais e a smartificação do território, podem-nos reconciliar com o ato criativo e a curadoria do espaço e do território impedindo, assim, que se formem e acumulem as externalidades negativas que uma economia de mercado extrativista e produtivista costuma despejar sobre o ambiente e os contribuintes.
Aqui chegados, porém, importa saber quais são os limites e as linhas vermelhas que estamos dispostos a respeitar. Ora, na era da transição tecno-digital o processo de patrimonialização tem uma cadeia de valor própria que não é, todavia, independente do conceito que prevalecer em matéria de cidade inteligente e criativa. E, do mesmo modo, importa não esquecer que o turismo é apenas um subsistema do sistema regional de desenvolvimento territorial e que essa interdependência lhe impõe determinadas regras de bom comportamento. Tal como, de resto, o cluster das artes e da cultura que não devemos confundir com eventos, entretenimento, recreio e pastiche turístico.
Dito isto, importa saber como a inteligência coletiva de uma determinada região ou território está organizada e quais os procedimentos deliberativos que utiliza para prevenir os efeitos externos negativos dos processos de turistificação, patrimonialização e estetização que são abusivos e intrusivos, pouco sustentáveis e com uma pegada elevada.
Em primeiro lugar, importa saber o que determina a equação do processo de patrimonialização: é a mercantilização do turismo e do património (1), é a convencional tecnologia arqueológica e histórico-cultural que comanda (2), é uma abordagem socio-antropológica que prevalece no quadro, por exemplo, de um plano nacional de educação e cultura para os mais jovens e os menos jovens (3), é a exploração meramente comercial e financeira que patrocina determinados usos e aplicações com finalidade turística (4) ou é, finalmente, uma mistura um pouco caótica de todas estas opções (5), onde os vários interesses e públicos podem coabitar e mesmo colidir se não existir um centro de racionalidade política e territorial que ponha ordem e uma boa dose de bom senso e bom gosto para administrar todos estes fluxos de vantagens e inconvenientes. Dito de outro modo, a digitalização de um território precisa de um contraponto, de um centro dotado de um mínimo de racionalidade territorial que evite a cacofonia e o ruído de fundo e seja capaz de estabelecer o ponto de equilíbrio entre uma perspetiva estritamente empresarial do negócio turístico-digital e a sua relação saudável com a perspetiva da inteligência institucional e coletiva das comunidades territoriais, em particular, com o seu património e memória coletiva.
Em segundo lugar, é preciso salvaguardar o consenso social e a legitimação simbólica que são fundamentais para uma transmissão benigna da herança patrimonial, razão pela qual os processos de classificação, denominação e certificação se afiguram fundamentais para uma transmissão patrimonial que não ofenda a memória histórica. Por exemplo, não há dúvida de que a preparação técnico-científica de uma candidatura, como aquela que a cidade de Évora liderou a capital europeia da cultura 2027, recoloca o triângulo virtuoso entre tecnologia, património e turismo num patamar mais elevado e exigente uma vez que o estudo técnico-científico dos nossos recursos patrimoniais é uma espécie de linha vermelha para os excessos de turistificação ao mesmo tempo que funciona como um instrumento precioso de marketing territorial.
Em terceiro lugar, as novas opções de reabilitação e restauração, mas, também, a introdução das tecnologias digitais, obriga-nos a rever a repartição de rendimentos internos à cadeia de valor, um problema que o território necessita de acautelar. Acresce que a profissionalização em redor do processo de patrimonialização pode não ser nada pacífica, uma vez que os processos de industrialização e turistificação do património atraem novas profissões e interesses e a coabitação entre algumas delas, por exemplo, entre conservadores, gestores, animadores e operadores turísticos e curadores pode ser
algo problemática. Em especial, a relação entre valoração e valorização é crítica no processo de patrimonialização e na formação de uma justa cadeia de valor.
Finalmente, a ligação hipertextual que o património mantém com muitas outras disciplinas e linguagens cria as condições contextuais favoráveis para a produção de conteúdos artísticos e culturais de maior valor acrescentado, desde logo, a valorização das artes e ofícios tradicionais e sua incorporação nos produtos e serviços produzidos localmente, mas, igualmente, todos os sinais distintivos que podem ser conectados com os percursos de natureza, lugares de culto e peregrinação, endemismos locais, mercados de nicho, os terroirs como lugares de culto patrimonial e promoção do turismo residencial, as amenidades, artes da paisagem e os serviços de ecossistema, os recursos endógenos e a valorização das artes e ofícios tradicionais, entre outros
Nota Final
Tudo o que fica dito, relembra-nos que a governação das cidades inteligentes, justas e criativas deve fazer prova de vida também no que se refere aos processos de turistificação, patrimonialização, estetização e digitalização, em especial, o seu virtuosismo, moderação e justa medida, de tal modo que não sejam irreversíveis os danos causados sobre os recursos patrimoniais, naturais e culturais, por via de uma economia de turismo massificado, uma espécie de mercantilização do património natural e cultural que um atribulado e oportunístico processo de turistificação muitas vezes proporciona. Muita atenção, pois.

