<p>Portanto falhou a primeira tentativa do professor Cavaco Silva de formar um governo de iniciativa presidencial. Os resultados de Manuela Ferreira Leite e a vacuidade da campanha do PSD não fizeram justiça à imensa ajuda que de Belém veio com as insinuações de que no Governo eram capazes de tudo e mais alguma coisa (provavelmente são, mas isso é outra história). Nos últimos dias de campanha Manuela Ferreira Leite ainda tentou cavalgar as derradeiras deixas do guião Belém/"Público".</p>
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Convenhamos que uma urdidura contendo um director de um jornal escutado pelas secretas do Governo depois de uma revelação explosiva de espionagem, é bom material. Só que sem actores capazes, nem Tennessee Williams tinha existido. O patético resultado eleitoral do PSD mostra que o povo português, tal como o seu presidente, não é ingénuo e não ficou convencido com o libreto de Fernando Lima. Faltou a Manuela Ferreira Leite engenho, arte e sobretudo coragem para fazer campanha com base em elementos realmente sólidos e definidores de carácter como o Freeport, a Independente e a TVI. O medo das represálias que cairiam sobre a sua vulnerável lista de indiciados e arguidos inibiu-a. Ferreira Leite escudou-se assim na segurança de um "escândalo" com aval presidencial.
A timidez do PSD nesta campanha está bem clara num cantinho da página 22 do seu programa, o impagável "Compromisso de Verdade", onde entre aspas e com pinças e luvas o partido se compromete, em tempo devido e fórum adequado, a abordar, eventualmente, questões como o Eurojust. Indirecta e nebulosa referência ao estridente caso de Lopes da Mota e às embrulhadas da justiça com o Freeport que Manuela Ferreira Leite preferiu contornar nas bizantinas penumbras do seu discurso político. E perdeu. E vai desaparecer na vida pública. Fica-nos Cavaco Silva e a pergunta: "Como é que o presidente Cavaco Silva consegue indigitar um homem em quem não confia? Que confiança pode o presidente de uma República ter num Executivo (que para o bem e para o mal é escolha sua) que planta espiões em banquetes oficiais e usa todos os artifícios possíveis para escutar a palavra presidencial mais discreta? Aníbal Cavaco Silva marcou ritualmente com o ferrete da dúvida manhosa a testa de José Sócrates quando disse que "não era ingénuo". Com isto, o selo presidencial da contaminação ficou aposto à personalidade política de Sócrates. E está lá indelevelmente patente gritando urbi et orbi: "Ecce Homo". Este é o homem em quem o presidente não confia, tenha ele 30 ou 40 por cento do voto.
Como é que o vai conseguir nomear e manter, ainda que só nas aparências, a imagem de que na República Portuguesa quem mais ordena é o seu presidente, que garante a lisura dos comportamentos dos agentes do Estado?
Como é que essa garantia é válida quando o nomeador não considera que o nomeado esteja acima de qualquer suspeita? Pelo contrário! Há fortes suspeições sobre o potencial nomeado, diz o presidente que não é ingénuo. Felizmente vem aí o 5 de Outubro, em que com um sonoro "Viva à República" normalmente se exorcizam pequenos engulhos, exaltando feitos passados, e se mobilizam energias para o futuro. Por que é que o presidente decidiu não falar neste 5 de Outubro? Porque os engulhos são demasiado grandes? Porque o passado, para ele, não conta? Porque não acredita no futuro? Porque sabe que os seus dias à frente da República chegaram ao fim?