Os interesses do país exigem, com frequência, lidar com pessoas repugnantes. Mas, de preferência, sem fazer coisas repugnantes.
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É preferível não chamar a alguém repugnante a acabar por ter de fazer algo repugnante. Podemos dizer que temos princípios se os usamos para julgar os outros, mas não para guiar o nosso comportamento?
O plano europeu de recuperação económica e o novo quadro financeiro plurianual (que também está em discussão) são fundamentais para Portugal. Temos seguramente de estar disponíveis para fazer compromissos. Mas a função dos princípios é guiar-nos nesses compromissos, não ser a sua moeda de troca.
António Costa esqueceu isto quando "foi dar a mão" ao primeiro-ministro Orban, e logo no momento em que o regime húngaro tem reforçado ainda mais o seu caráter autocrático. A tese do primeiro-ministro é de que a discussão sobre o respeito dos valores democráticos num estado- -membro da UE tem um mecanismo próprio nos tratados que é o Artigo 7.o. Este prevê a suspensão dos direitos de um Estado, mas exige a unanimidade para isso (logo, é ineficaz). Para o PM ligar esta questão com o tema orçamental seria monetizar esses valores. Acontece que, não apenas o Tribunal de Justiça da União Europeia já tornou claro que os valores democráticos e do Estado de direito se aplicam aos estados-membros para lá do previsto no Artigo 7.oº, como a condicionalidade orçamental já é imposta noutras matérias que também têm normas próprias nos tratados. Tratar-se-ia de estender o que já existe aos valores democráticos e do Estado de direito, algo em discussão há mais de dois anos. O resultado final será seguramente um compromisso (eu próprio já sugeri um que passaria, em parte, por atribuir a gestão dos fundos a entidades cuja independência seria assegurada pela UE). Esse compromisso não exigia, bem pelo contrário, que o PM desse à posição de Orban o apoio público antecipado que nenhum dos outros estados que necessitam fortemente deste programa europeu ofereceu. Isto levou mesmo o principal jornal de assuntos europeus ("Politico") a escrever que o PM português diz que estes valores não se compram, mas parece disponível para os vender.
É importante notar que o que está em causa não é apenas a necessidade de assegurar em todos os estados os valores fundamentais do projeto europeu. É muito mais que isso. Se não houver democracia num estado-membro é também a nossa democracia que é diminuída. Se, por exemplo, num estado-membro as eleições não forem democráticas isso também afeta a eleição dos deputados ao Parlamento Europeu e, logo, o caráter democrático das leis europeias que todos temos de cumprir. Aceitar a erosão da democracia húngara é aceitar a erosão da nossa própria democracia.
*Professor universitário