Corpo do artigo
Não sei onde é o balcão, mas estou com vontade de o procurar para ver se consigo devolver o que me tinham prometido, mas não está a funcionar. Deixamos para trás aqueles tempos esquálidos em que de cada vez que abríamos o jornal ou víamos a televisão era para descobrir um corte ou um aperto, que nos deixava de mal com o Mundo e connosco. Virada a página, estaríamos agora na República dos Afetos, num cenário de descrispação política que ajudaria a sociedade a viver mais normal.
Tenho uma notícia para vocês: olhando para os últimos dias, não está a funcionar muito bem e a culpa não é da economia, porque o país, mesmo descontando a inédita greve da Autoeuropa, parece continuar a registar aquelas percentagens que fazem brilhar as estrelinhas da União Europeia. O problema é que mudam-se os tempos, mas as vontades fazem pouco por isso.
Não há clima político que ajude a alterar uma força maior, subterrânea, que nos parece levar a contrariar o poeta inglês John Donne, que um dia escreveu que "nenhum homem é uma ilha". Parecemos cada vez mais fechados nas nossas posições, mais desconfiados de qualquer posição que não seja exatamente a nossa, numa atitude que parece refletir a constante vozeria clubística do futebol, e encontramos o ecossistema perfeito no "bate e foge" das redes sociais.
Vejam a discussão perfeitamente desproporcionada em torno de dois blocos de atividades da Porto Editora e o seu alegado desequilíbrio no tratamento do género. Se não éramos críticos, éramos marialvas machistas; se éramos críticos, éramos histéricas feministas. E se o Governo recomenda a retirada dos livros, é porque é "censura". E se se diz que é "censura", é porque estamos alinhados com as piores forças da Direita. Vejam as reações a uma manchete do JN sobre enfermeiros e ao artigo cordato que ontem aqui foi escrito. "Limpo-te o sebo", escreveu um enfermeiro, entre dezenas de mensagens insultuosas no Facebook. Veja-se até a forma como o ex e o atual presidente da República decidiram entregar-se à troca sibilina de críticas. E outros exemplos haveria.
Não estranhem por isso que eu queira devolver estes tempos de descrispação que me tinham vendido. Infelizmente, mesmo continuando a viver num dos países mais pacíficos do Mundo, tenho que conviver com muita gente que parece estar concentrada na atitude bélica de nunca conseguir colocar-se no lugar dos outros. Se a falta de discussão crítica é absolutamente indesejável, a incapacidade para estar aberto ao compromisso, para o diálogo, é o caminho certo para uma sociedade pobre de ideias.
SUBDIRETOR