Um cardápio vasto de reivindicações, poucas objetivas e muitas sustentadas em chavões, estão na origem de uma greve de médicos marcada para terça e quarta-feira.
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O direito à indignação ainda não foi alvo de nenhum reparo interpretativo do Tribunal Constitucional e não há como deixar de apreciá-lo dentro das vantagens associadas a um regime democrático.Exige-se, apesar de tudo, algum rigor na análise. É redutor, desde logo, catalogar o protesto como uma greve dos médicos. Não sendo perscrutável qualquer reação de indignação nas unidades hospitalares sob gestão privada, é mais correto batizá-la de greve de médicos do Serviço Nacional de Saúde. Melhor: de parte dos médicos do Serviço Nacional de Saúde.
Confuso? Nem tanto.
Ao invés do que sucedeu há dois anos, altura em que o movimento sindical dos clínicos funcionou unido, desta vez a FNAM, Federação Nacional dos Médicos, está sozinha em pista - e dispondo do sempre imprescindível apoio e megafone da CGTP; agora o SIM, Sindicato Independente dos Médicos, trocou a manifestação pela hipótese de negociar dossiês complexos com a equipa do Ministério da Saúde. Naturalmente, esta diferença de comportamentos põe mais a nu a suspeita de que a razoabilidade das críticas e das reivindicações entram na vasta gaveta da estratégia política, pura e dura.
É intocável, insiste-se, o direito à greve e todas as movimentações tendentes a fazerem do protesto uma câmara de eco das dificuldades e das pechas existentes no Serviço Nacional de Saúde. A manifestação à porta do Ministério da Saúde proporcionará, com certeza, belas imagens televisivas - incluindo as dos deslocados de vários pontos do país em autocarros de empresas carecidas de faturação. Outra conversa é saber-se se quem precisa de ir às unidades hospitalares do Estado terá algum benefício de mais uma desestabilização em área tão sensível quanto crítica.
A defesa do Serviço Nacional de Saúde não se discute - é um dos bens maiores adquiridos no Portugal pós-25 de Abril. Introduzir--lhe eficácia sem fazer disparar tolamente os consumos de dinheiro público (inexistente) é desejável - e só possível se todas as partes envolvidas forem capazes de uma articulação consciente, sem manigâncias políticas encobertas. Por agora, existirão riscos de degradação mas o país continua a ter razões para se orgulhar do seu Serviço Nacional de Saúde, repleto de bons profissionais em múltiplas áreas.
A greve dos médicos, esta greve, não deve ser diabolizada. Dispõe da vantagem de abrir novas linhas de discussão, incluindo uma de que pouco se fala: a do desempenho e protagonismo da Ordem dos Médicos e, sobretudo, do bastonário. Uma vez mais está do lado dos protestos sindicais e até as inscrições para os indignados irem a Lisboa podem ser feitas na Secção de Faro da Ordem dos Médicos, como anunciado no "site" da FNAM. Não perceber a diferença entre uma Ordem e um Sindicato é desajudar.