A última edição do prémio Pessoa escolheu alguém que, pela primeira vez, eu ainda não conhecia. Falha minha, seguramente, porque o professor Henrique Leitão foi já responsável por organizações de divulgação científica (acessíveis ao grande público) muito importantes, como foi o caso da curadoria da Exposição "360 graus, Ciência Descoberta", que o júri considerou ter dado "a conhecer ao grande público a importância crítica que a Península Ibérica teve para o desenvolvimento científico e o progresso civilizacional". Isto para além da coordenação das obras completas de Pedro Nunes (o nossos grande matemático do século XVI) já publicadas, e de uma consistente investigação que permite que nós, os portugueses, assumamos uma atitude mais positiva face ao que foi afinal uma atividade científica nacional continuada e reconhecida, tão diferente da tradição episódica e inconsistente em que nos fazem, quase sempre, crer.
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Li tudo o que pude sobre este recém-chegado à nossa galeria de "maîtres-à-penser" e de artistas e fiz votos de um rápido acesso à sua produção intelectual.
Tive a sorte, porque pouco tempo depois pude assistir a uma conferência (em Braga) na qual participou.
Ao desafio "Olhares sobre a cultura", o novo prémio Pessoa fez jus à distinção e discorreu com originalidade e firmeza sobre o pensamento de Whitehead e Steiner para demonstrar que o desenvolvimento científico europeu é tributário de um caldo cultural particular que lhe deu um "distinctive tone of thought" e o tornou, reconhecidamente, no maior empreendimento intelectual em que a Humanidade se envolveu.
Que especificidade é então essa que tanto valorizou o nosso progresso científico?
A de termos sido incrustados ao longo de séculos por duas convicções fundamentais: a convicção instintiva da existência de uma ordem no Mundo natural (ou seja, a convicção de que "cada ocorrência detalhada pode ser correlacionada com os seus antecedentes de uma maneira perfeitamente definida") e a convicção, igualmente axiomática, de que a mente humana sempre será capaz de explicar qualquer problema ou facto natural. Sempre, ilimitadamente.
Mas como assimilamos a convicção instintiva da racionalidade e a crença axiomática no progresso ilimitado?
Henrique Leitão mostrou, com clareza meridiana, a partir sobretudo das respostas de Whitehead, como ambas se tornaram possíveis por via do cristianismo.
Ainda que com raízes judaicas e gregas, foi o cristianismo, em particular pela teologia medieval, que pressionou durante séculos a mente europeia com a ideia "de que o Mundo natural contém uma racionalidade intrínseca e autónoma que é o reflexo da própria racionalidade de Deus, do logos divino" e de que "o Mundo natural não foi só feito por Deus mas foi especificamente feito para nós e, portanto, comensurado à nossa razão, sempre acessível à mente humana".
Tenho para mim que, naquela noite, Henrique Leitão permitiu, pairando muito acima de qualquer crença individual, reabrir o debate sobre o lugar do cristianismo no processo de construção europeia e sobre a respetiva ausência no preâmbulo da convenção.