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Não parece razoável pretender explicar o montante assustador que a nossa dívida atingiu com a falta de uma norma constitucional que lhe impusesse uma barreira intransponível. Contudo, é mesmo isso que se quer insinuar com a proposta de rever a Constituição para nela inscrever tal preceito milagroso. Claro está que falta também demonstrar que a inclusão de um tal limite no texto da nossa Lei Fundamental possa contribuir para resolver as actuais dificuldades. Sabemos todos que só vamos conseguir algum alívio quando a economia der sinais de recuperação, o que ninguém sabe quando irá acontecer. Por isso se alega - e desgraçadamente não ouvi até hoje melhor argumento do que este - que assim estaríamos a dar um sinal positivo aos "mercados internacionais". Entenda-se, dar um sinal aos especuladores financeiros mas também à senhora Merkel e ao senhor Sarkosy que, para disfarçar a sua falta de vontade para enfrentar a crise que ameaça a Europa, anunciaram no final de um encontro, no passado mês de Agosto, esse expediente gratuito e indolor. Parece inquestionável, portanto, que se trata de mera cosmética. E tendo-se reduzido à limitação constitucional do défice, a ambiciosa reforma que tinha sido prometida com grande pompa há cerca de um ano, esta iniciativa de uma tão modesta "revisão pontual", agora lançada no Fundão, merece, apesar de tudo, ser ponderada.
Desde logo, porque de facto não se trata de matéria alheia às preocupações constitucionais. Bem pelo contrário, o controlo da despesa pública é um princípio mais velho do que as democracias modernas, um dos seus fundamentos e permanente justificação. Em sintonia com a generalidade dos estados democráticos, a Constituição da República submeteu a autorização das despesas à competência exclusiva do Parlamento, que é o lugar próprio da representação do povo, único titular do poder soberano. É a Assembleia que todos os anos aprova o Orçamento do Estado, que autoriza o Governo a contrair empréstimos e que define as condições em que o há-de fazer. E é também a Assembleia da República que, juntamente com o Tribunal de Contas, aprecia no ano seguinte as contas da execução do Orçamento que o Governo está obrigado a prestar. E não se fica por aqui a atenção que a Constituição dedica às questões económicas e aos problemas financeiros. Estabelece orientações para as políticas económicas, aponta estratégias para o desenvolvimento e a sua sustentabilidade, acautela preocupações ecológicas, garante os direitos e os interesses legítimos dos cidadãos, trabalhadores, empresários ou contribuintes. Será então por falta de boas normas constitucionais que chegamos às aflições presentes ou será consequência das acções e omissões dos governantes que escolhemos, perante uma conjuntura, é certo, excepcional e complexa? Quem desconfia das virtudes da representação democrática? Quem tem medo da responsabilização política dos eleitos?
Por outro lado, há que assinalar a insuficiência desta "revisão pontual" oriunda, precisamente, dos que mais se queixam - e com razão! - de que a nossa Lei Fundamental é demasiado extensa e regulamentadora. Então a extinção dos "governadores civis" não passou também de mera cosmética? Não seria agora conveniente acautelar uma ampla reforma da administração territorial que eliminasse as minuciosas exigências constitucionais (art. 235.º a 265.º e art. 291.º) relativas à composição de órgãos próprios, à sua criação, extinção e modificação, o que tem protelado a promessa das regiões administrativas e sufoca a modernização do Poder Local?
E o que pretendiam quantificar na Constituição, seria apenas o limite de endividamento público ou também o privado, que assume entre nós valores substanciais? E quais seriam as sanções? E os remédios? Não há razões, enfim, que fundamentem a necessidade da imposição constitucional de um limite máximo de endividamento. É uma invenção que em nada contribui para a resolução do problema real que hoje enfrentamos, apenas lhe acrescentaria outro.