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Recebi por email a ementa da semana da escola do meu filho, programada por uma nutricionista, segundo os preceitos de uma alimentação saudável. Segunda-feira foi creme de brócolos e massa com feijão branco, tomate, beringela e orégãos (dia de comida vegetariana). Hoje há sopa de espinafres, arroz de bacalhau e salada de alface e cenoura. Quarta-feira será creme de abóbora, bife de frango com batatas assadas e salada de pepino e beterraba. Quinta-feira será sopa juliana de legumes, massada de peixe com salada mista. Sexta-feira será sopa de legumes, tirinhas de peru com brócolos, arroz de açafrão e couve-roxa salteada. Os lanches incluirão fruta variada, pão com queijo, iogurte natural ou leite. Crianças subnutridas em Gaza são baleadas na fila enquanto imploram por comida.
Hoje fui almoçar ao restaurante do bairro e o menu listava como pratos do dia as seguintes opções: filetes de peixe-espada grelhados, posta arouquesa, petingas fritas com arroz de tomate, bolinhos de bacalhau, filetes de pescada com salada russa, panados de frango com arroz de tomate e vitela estufada. A sopa era de nabiças e para a sobremesa havia melão, mousse de chocolate, pudim e tarte de amêndoa. Comi filetes de pescada, dispensei a sobremesa, bebi água das pedras. Em Gaza quase dois milhões de pessoas morrem à fome, perante a passividade da comunidade internacional.
No caminho para casa vejo um casal a comer um Cornetto num banco de jardim, um outdoor que faz publicidade a uma marca de vinhos, pessoas nas esplanadas, um homem carregando ao ombro um saco de comida para cão. Vejo a fila para o parque de estacionamento do shopping, vejo a senhora na paragem com dois pesados sacos de compras. Ouço no rádio do carro um podcast da Antena 1 sobre gastronomia apresentado pela Joana Barrios. Já estacionada, reparo no invólucro de um chocolate, amarfanhado no compartimento junto à porta e numa garrafa de água vazia. Em Gaza não há água potável.
No Instagram vejo uma influencer a discorrer sobre baby led weaning e a sua importância na introdução alimentar dos bebés. Vejo Raiza Costa, chef de pastelaria brasileira, ganhar um concurso de perda de peso no seu ginásio em Brooklyn, depois de ter aderido a um intenso programa de treinos e a uma dieta muito rica em proteínas. Vejo imagens de um faustoso casamento no jardim da Fundação de Serralves. Vejo uma crítica ao restaurante de um novo hotel na Baixa. Vejo uma receita de panquecas de banana com aveia, feita sem açúcar, sem glúten e sem gordura. Enquanto no mesmo feed, entre fotografias de férias na praia e looks do dia, vão surgindo imagens de crianças sonolentas, com ossadas pronunciadas, furando a pele cinzenta, ao colo de mães desesperadas. Vejo as panelas vazias de Gaza, as filas, as mortes, o enorme descaso, e sinto que é no hiato entre uma coisa e outra que vai escorrendo, da ampulheta do Mundo, a nossa humanidade.