A passagem de 2010 para 2011 poderia ter sido um período de intenso e participado debate político, visto que se aproximavam as presidenciais. Não era isso o que se verificava. As eleições estavam a ser desvalorizadas na comunicação social, na medida em que as sondagens indicavam que seria reeleito, à primeira volta, o Presidente em funções.
Corpo do artigo
A previsão era razoável e possuía a validá-la os casos de todos os anteriores presidentes: Eanes, Soares e Sampaio. Para o Presidente que se volta a candidatar a campanha não se limita aos dias previstos na lei, que foram antecedidos por cinco anos de sobreexposição mediática enquadrados no âmbito da legítima acção presidencial. Não é fácil contrariar esse enorme capital de influência acumulado.
O mais curioso, neste contexto, é que certa imprensa de referência já começava a transferir o debate do confronto entre os candidatos para a extensão dos poderes presidenciais. Deste modo, tudo se passava como se os resultados já fossem um dado adquirido, sendo mais interessante estruturar a agenda política à volta de temas pós eleições, regressando a um tópico quase permanente da política portuguesa: a exacta definição do regime semipresidencial.
O título deste artigo inspira-se numa entrevista do constitucionalista Gomes Canotilho ao Expresso. O jurista critica Cavaco Silva por se afirmar "neutral", "suprapartidário" ou" antipolítico", porque o cargo exige atitudes políticas. "Todos temos as mãos sujas", sublinha Canotilho, o que significa que "estamos metidos nisto".
Os constitucionalistas e politólogos mostram que a Constituição consente interpretações políticas que se podem traduzir em diferentes práticas constitucionais. Esta questão é particularmente relevante em eleições que decorrem com um Governo minoritário em funções e de cor política diferente do partido a que pertence o presidente recandidato.
Os debates só contribuíram para romper um certo clima de apatia em torno das presidenciais na medida em que nalguns deles se aflorou a controvérsia das acções de Cavaco Silva na Sociedade Lusa de Negócios, proprietária do BPN. Se nos teledebates a questão se manteve em tom moderado, apenas contrariado pela resposta áspera do presidente em funções, em defesa da honra, os meios de comunicação social encarregaram-se de amplificar o assunto. Aos ataques a Cavaco Silva, foi contraposto um caso de natureza diferente: a inserção de um texto literário de Manuel Alegre, sobre o dinheiro, numa acção publicitária.
Qual a influência da emergência do "escândalo"? Com a campanha (propriamente dita) ainda a meio caminho, qualquer resposta seria prematura. Os escândalos políticos visam abalar a reputação e a confiança em determinada figura, mas também produzem efeitos mais profundos sobre o sistema democrático no seu conjunto que pode sair enfraquecido e abalado. Apesar do diferente impacto dos escândalos políticos, que não é possível reduzir a um único modelo, eles traduzem-se - conforme sustenta o sociólogo John Thompson - num "impacto corrosivo nas relações de confiança" que pode conduzir a uma "desconfiança generalizada" no sistema político.
Com a subalternização das questões ideológicas, o debate político passou a deslocar-se para o carácter dos políticos, com a quase permanente sucessão de escândalos a emergir na cena mediática. Mesmo que venha a ser reduzido o impacto eleitoral dos sucessivos ataques aos candidatos enquanto cidadãos, a democracia sairá, naturalmente, enfraquecida destas campanhas ad hominem.
Seria interessante saber o que pensa de tudo isto o cidadão português que, ao longo dos últimos anos, tem sido o principal alvo de ataques à sua honra e reputação. O seu nome é José Sócrates. Desta vez, em vez de estar no centro do conflito, pode assistir ao espectáculo na primeira fila da plateia.
