Corpo do artigo
A Esquerda não é woke. É universalista e acredita que mudanças políticas, sociais e económicas podem melhorar a vida de todas as pessoas. Susan Neiman, no seu livro editado este ano pela Presença, apresenta-nos um manifesto contra os tribalismos e particularismos identitários no combate político. Considera que o pensamento e os comportamentos woke são armadilhas que afastam a Esquerda dos valores inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que matam a esperança e obscurecem as alternativas de mudança.
“É possível definir woke?”, pergunta. E responde: começa pela preocupação com as pessoas marginalizadas e termina com a redução de cada uma ao prisma da sua marginalização. É esta redução que está na base de políticas identitárias e do tribalismo. A atração da Esquerda pelas políticas identitárias é particularmente trágica, porque a faz abandonar o terreno dos direitos humanos e do universalismo onde reside a sua origem e a sua força. “O tribalismo é um jogo perigoso, como a Direita percebeu muito cedo: se as reivindicações das minorias não são vistas como direitos humanos, mas como direitos de grupos específicos, o que impede uma maioria de insistir nos seus próprios direitos?”
Trata-se, podemos dizê-lo, de um livro de filosofia política aplicada à análise da situação atual de boa parte da Esquerda. A autora procura chegar a muitos dos que querem compreender e ajudar a resolver os problemas que enfrentamos nas sociedades contemporâneas. Partindo dos clássicos do Iluminismo, recupera as ideias básicas do universalismo - solidariedade, justiça, progresso e compromisso com a dúvida -, demonstrando a sua atualidade para a formulação das políticas de Esquerda.
Simultaneamente, sacode as visões mais sombrias sobre o progresso e o mundo moderno, considerando que, sendo, em muitos casos, exercícios analíticos válidos e legítimos padecem de dois problemas. Concentram a experiência humana nas dimensões traumáticas e negativas, ancoram-nos no passado, obscurecendo ou mesmo ignorando todas as outras dimensões. Ao fazê-lo, minam o futuro e a esperança de mudança.
Porque os passos dados em direção ao progresso tiveram por vezes consequências terríveis deixamos de ter esperança no progresso? As desilusões são reais e por vezes devastadoras. Mas as teorias woke, em vez de apontar soluções, colocam a descrença no centro da experiência humana, “criando um simulacro de suspeita que constitui a música de fundo da cultura ocidental contemporânea”.
Contra a cultura woke a autora recomenda, e eu também, a (re)leitura de “Cândido, ou o otimismo”, de Voltaire.