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1. Devemos à Grécia esta derradeira oportunidade de salvar a Europa. É à esquerda que se joga o sucesso desta operação de resgate. O "acordo" alcançado em Bruxelas na madrugada de 13 de julho, submeteu a Grécia "a um tratamento - mais austeridade - que não funcionou no passado e que apenas foi prescrito para satisfazer os interesses políticos domésticos da Alemanha". "O ministro das Finanças alemão queria obrigar um membro da moeda única a sair "voluntariamente", utilizando formas de pressão extremas. Ou a Grécia sai (com a plena consciência das consequências desastrosas que acarreta para o país e para a Europa) ou aceita um programa que efetivamente a transforma num protetorado europeu sem a menor esperança de algum progresso económico". Não foi algum ativista da "esquerda radical", um "académico" ou governante grego, quem fez esta afirmação. Foi o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Joschka Fischer ("O regresso do vilão germânico", Project Syndicate, Social Europe, 24 de junho de 2015).
2. E ali deplora também que a chanceler alemã se tenha visto reduzida a optar entre as maquinações do seu ministro das Finanças ou as propostas dos governos da França e da Itália, e chega por fim à conclusão dramática de que a Europa, nessa noite, "mudou de natureza". O Governo alemão rompeu com a orientação europeia que marcou toda a sua política externa desde a II Guerra Mundial. E, por isso, o "projeto europeu", "construído com base na diversidade e na solidariedade", está em risco. Um filósofo, compatriota do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros alemão e notável "arquiteto" da construção europeia - Jürgen Habermas - confessava por seu turno: "Eu temo que o Governo alemão, incluindo a sua componente social- democrata, tenha jogado fora, numa noite, todo o capital político que uma Alemanha melhor tinha conseguido adquirir ao longo de meio século" ("The Guardian", 16 de julho de 2015).
3. A esquerda social-democrata - trabalhistas, democratas, socialistas democráticos - enfrenta hoje o desafio histórico de se reinventar, sob pena de prosseguir no caminho da sua própria extinção. É uma constatação flagrante nos países do sul da Europa que se projeta agora, abertamente, na arena de Bruxelas. Nesse caminho de perdição se inscrevem os episódios de acrobacia pungente a que se viram obrigados, Martin Shultz - o social- democrata que preside ao Parlamento Europeu - e Sigmar Gabriel - o presidente do Partido Social Democrata alemão e vice-chanceler de Angela Merkel. Ao sinal de Wolfgang Schäuble, mal começou a circular o "documento informal" onde este preconizava a "saída voluntária"da Grécia, logo assumiram que se tratava de um facto consumado e apressaram-se a engrossar o coro dos que sempre exigiram a punição exemplar dos esquerdistas gregos, em uníssono com a direita mais dura (representada em Portugal, por Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque ou Cavaco Silva). Porém, a reunião dos Socialistas Europeus, convocada de forma a anteceder a cimeira decisiva, iria declarar que a saída da Grécia era inaceitável, trocando assim as voltas a Gabriel e a Schultz que, de novo, se desdobraram em declarações públicas, para afiançar o contrário do que tinham anunciado na véspera. No Parlamento Europeu, entretanto, o primeiro-ministro grego seria recebido com um longo e caloroso aplauso. Na cimeira, os governos de esquerda, da França e da Itália, após cinco meses de comprometido silêncio, ousaram finalmente enfrentar o plano germânico e, embora a troco de uma redação miserável, lavraram o acordo que, momentaneamente, conseguiu travar um desenlace fatal.
4. O que hoje ameaça o projeto europeu não é o radicalismo esquerdista. É a indiferença cínica pelo sofrimento humano, a avidez usurária dos fanáticos da austeridade, o oportunismo dos que se acomodam cobardemente à vontade dos mais fortes. É o próprio projeto europeu que precisa de ser urgentemente resgatado do pântano em que a Europa se transformou às mãos da direita mesquinha e retrógrada que ainda comanda o seu destino. É à esquerda que compete separar as águas e repor os valores do pluralismo político e da diversidade cultural que definem a matriz da construção europeia como um projeto de paz e de solidariedade.
PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL