O rastilho que desencadeou a explosão democrática que varreu a margem Sul do Mediterrâneo, desde o Norte de África até ao Médio Oriente, criou uma oportunidade única para a Europa construir uma relação sólida de confiança e de cooperação com os seus vizinhos. Como sublinha o diretor do Centro de Estudos de Segurança da União Europeia, Álvaro de Vasconcelos, no livro agora publicado, "Listening to unfamiliar voices - The Arab democratic wave", as "revoluções árabes são o teste definitivo à capacidade da União Europeia para desenvolver uma política externa e de segurança comum (PESC) consistente com os seus valores e princípios, uma pré-condição para continuar a ser um importante ator global no século XXI". A transformação do Mediterrâneo num espaço de paz e boa vizinhança é um interesse central dos europeus, por muito difícil e distante que se possa configurar a realização plena de tão ambicioso objetivo. A Primavera Árabe, em segundo lugar, põe à prova a determinação e a sinceridade do empenhamento da União Europeia em assumir um comportamento coerente na defesa dos direitos humanos, o que constitui um requisito incontornável de legitimação da sua política externa e dos estados- membros.
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A "responsabilidade de proteger" foi consagrada pelas Nações Unidas no Documento Final da Cimeira de 2005, onde se afirma que é uma responsabilidade primária dos estados proteger as suas populações do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e prevenir análogas atrocidades, uma responsabilidade que é parte integrante dos seus atributos de soberania mas que apenas permanece como sua competência exclusiva até que se demonstre a sua incapacidade de o garantir. É um conceito normativo que desenvolve um princípio emergente do direito internacional, no final do século passado, que sustenta que a violação grave e generalizada dos direitos humanos pode fundar um "direito de ingerência humanitário" e até o "uso da força" contra um Estado soberano. A Líbia e a Síria são marcos dissonantes da interpretação europeia deste novo "dever de proteção". A incapacidade de assegurar adequado socorro humanitário à população da Síria não resultou do fracasso da aprovação da Resolução do Conselho de Segurança, inviabilizada pelo veto da Rússia e da China. Com efeito, a "responsabilidade de proteger" não se limita nem implica sequer uma intervenção militar que, naturalmente, seria ilegítima sem o suporte de uma Resolução do Conselho de Segurança, mas cujas vantagens dificilmente se demonstram nas circunstâncias atuais do conflito. Porém, em flagrante contraste com a omissão da "responsabilidade de proteger", na Síria, a intervenção da NATO, na Líbia, iria exibir uma desmesurada energia que ultrapassou largamente o âmbito humanitário que lhe assinalava a resolução do Conselho de Segurança que a legitimou. A "responsabilidade de proteger" insere-se na problemática do chamado "constitucionalismo global" que descreve uma tendência, sobretudo patente em algumas regiões ou em determinadas matérias, para uma "constitucionalização" do direito internacional. Dos direitos humanos à proteção do ambiente, das práticas financeiras internacionais aos processos de decisão do Conselho de Segurança ou às sentenças do Tribunal de Justiça Europeu, desenvolve-se a polémica e generalizam-se argumentos que perturbam a hierarquia da ordem jurídica internacional e transportam para o âmbito das relações internacionais possibilidades de coação e expectativas de eficácia que até há pouco se reputavam exclusivas da ordem interna dos Estados soberanos. Conciliar a democracia com os direitos humanos e a política com o direito, é o renovado desafio colocado pela ordem global.
A Primavera Árabe representa também uma preciosa oportunidade para desmentir os falsos profetas do "choque de civilizações" que deram por inevitável a guerra generalizada e o conflito de religiões. Que o Mediterrâneo possa reencontrar a sua vocação ancestral como espaço de comunicação e de convivência pacífica, de diálogo e de partilha entre povos, crenças e civilizações.