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O espectáculo televisivo da Eurovisão é devastador e impressivo: muitos meios e igual competência, trabalho e acerto, suficiente rasgo perante as possibilidades do género. Longe vão os tempos das grelhas de pontuação em família para ver quem dá mais. Hoje, ver o Eurofestival não permite sequer que olhemos para o papel. O papel do herói improvável não muda radicalmente o fado, apenas torna visível que provavelmente já se terá ido prego a fundo e a descer. Salvador Sobral, disse-o, não equaciona voltar. Este foi e será o seu (e nosso) momento de excepção, na mais relevante canção vencedora que o Festival nos deu nos últimos anos, simples e sumptuosa, superiormente interpretada, letal pela filigrana do coração e pela envolvência mágica dos arranjos. Um brinde à excepção de Salvador.
Se um dia alguém perguntar por ele, espero que digam que lhe permitimos dar tudo o que nos deixou de transparente e de implícito neste seu acto único de ajuste ao Festival da Eurovisão. O lamaçal de vulgaridade - em que se foi transformando o certame nos últimos anos - encontrou em Salvador uma garrafa de ar tão puro que até poderia significar veneno em excesso. Mas Salvador deixou um "statement" no palco e nas palavras que proferiu dentro e fora dele, sabendo bem que o fogo-de-artifício veio para ficar e que é normal que este tipo de certames apanhe muitas das canas. Não há arrogância alguma em desejar uma verdade diferente com um sorriso. Salvador quis - e bem - tornar significante a vitória para além da canção.
Se Salvador é materialmente (de) excepção, Portugal não pode sê-lo na forma. Segundo o texto de uma petição criada no primeiro dia útil após a vitória, as canções festivaleiras não se têm cantado em "reverse". A Suécia ganhou a Eurovisão em 2012 e foi aberto concurso público para a realização do Festival no ano seguinte, ao qual concorreram três cidades. Em 2014, na Dinamarca, a realização foi cortejada publicamente por cinco cidades. Para o Eurofestival de 2015, cinco cidades austríacas entraram na disputa. Em Viena, a Suécia volta a vencer e são seis cidades a concorrer à realização do certame no ano seguinte, vencendo uma cidade diferente da que havia ganho em 2012. Este ano, a Ucrânia recebeu o Eurofestival após a realização de concurso público que envolveu seis cidades. À excepção da Ucrânia, todos estes países têm menor dimensão populacional do que Portugal. À excepção da Ucrânia e da Suécia, todos têm menor dimensão territorial que o nosso país. Não há razão alguma que faça de Portugal uma excepção ao carácter público e transparente que deve presidir à escolha da cidade que acolherá o certame para o ano. Poderá ser na arena de Lisboa. Mas seria incompreensível que o Festival da Eurovisão de 2017 fosse a consagração do ajuste directo nas canções, toureando o país.
*MÚSICO E ADVOGADO
O autor escreve segundo a antiga ortografia