"Vivo do que me dão/nunca falto às aulas de esgrima/e todos os dias agradeço a Deus/esta depressão que anima". É este o refrão da nova música do grupo português A Naifa que regressa um ano passado sobre a morte do seu mentor João Aguardela. Lembrei-me daqueles versos, irónicos a roçar o nonsense, quando tive notícia do estudo da Deco sobre a forma como as famílias endividadas têm vindo a reagir à crise. Sumariamente, há uma maior predisposição para cortar em despesas com a alimentação ou com os medicamentos do que noutras, por exemplo com telemóveis ou com a televisão por cabo, que à partida o bom senso diria serem mais dispensáveis. Supérfluas, como se costuma dizer.
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Tanto quanto se pode apurar, trata--se de uma análise bastante alargada, envolvendo cerca de 5000 agregados familiares que recorreram àquela associação de defesa dos consumidores por estar em dificuldades financeiras. Com uma amostra desta dimensão estamos longe dos casos pontuais que só abusivamente podem ser usados para estabelecer generalizações. Dão uma boa reportagem, ou até um filme, mas não são base a partir da qual se possa extrapolar. No entanto, esse é um passo que muitos, de um lado e de outro do espectro político, não hesitam dar. Mesmo quando as motivações subjacentes são boas, na pressa de ajudar os desvalidos, presta-se-lhes um mau serviço. Políticas consistentes e eficazes requerem um conhecimento consolidado do fenómeno em causa. Dados recolhidos com as metodologias apropriadas e trabalhados sem preconceitos ideológicos. Só depois vêm as opções políticas. Que as há e muito diferentes. A não ser assim, podemos ter assistencialismo mas não temos solidariedade. Essa tem sido uma das maiores pechas das políticas dirigidas aos mais desfavorecidos: feitas mais de impulsos ideológicos do que de conhecimento da realidade.
Os dados agora divulgados pela Deco merecem uma análise cuidada. Aparentemente, resultam do esforço que aquela associação tem vindo a desenvolver para dar alguma "literacia financeira" a famílias endividadas que a contactam. Poderão, por isso, conter alguns enviesamentos e distorções. Ainda assim, como atrás se disse, são uma base inestimável para fazer a radiografia do comportamento das famílias portuguesas e seria bom que fosse disponibilizada a quem estuda fenómenos de pobreza e endividamento. O que a Deco conclui é muito perturbador, evidenciando quão fundo penetraram nos hábitos e costumes portugueses algumas derivas consumistas e como, numa sociedade do espectáculo e do aparente, o valor do superficial se sobrepôs aos valores de fundo. Para comer há, hoje, muita ajuda mas cortar nos medicamentos?! As prioridades comportamentais que o estudo identifica remetem-nos para o refrão da canção dos A Naifa ou então a história do sujeito que ao ser assaltado e perante o dilema "a carteira ou a vida" responde que o dinheiro lhe faz muita falta...