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Uma vintena de beatos grisalhos fez um tratado pela família tradicional e o grande pai da austeridade, disciplinador do povo, foi apresentá-lo. Andam muito compinchas, comendo o pão bolorento da velha senhora, arrotando alto, para que se ouça bem. Querem que o mundo saiba o que os seus santinhos acham da vida dos outros. Querem que os seus votos valham em casamento alheio. Querem que a gente se deite na cama da Opus Dei para ter doze filhos cada um.
Dizem-se contra a “cultura de morte”, contra a eutanásia, contra o aborto. Querem-nos vivos para poderem mandar no nosso corpo. Vivos para ocupar as mulheres que nos carregam e nos parem e nos amamentam e nos limpam o rabo, até ao leito de morte, por muito interminável que seja. Querem-nos vivos para trabalhar na sua fábrica, para lhes lavrar a herdade, para lhes tratar do jardim e limpar a retrete. Mas pouco se importam se temos comida, teto ou liberdade. Pouco se importam com o corpo que carrega, que pare, que amamenta e que limpa o rabo das crianças, dos velhos e dos doentes. Até porque para eles vale sempre mais o embrião do que a mulher inteira, por muito criança ou vítima que seja. Vale sempre mais a ideia de vida do que a vida feita, dona de si, com desejos e vontades. Porque, afinal, foi à custa de gerações e gerações de mulheres caladas e adoecidas que se construiu o tal mito da “família tradicional”, enquanto os senhores tinham o jantar feito a horas e a amante à espera.
Dizem-se contra à educação sexual, temendo que nos emancipemos contra o abuso, a ausência do prazer, a maternidade compulsória, a desinformação e o medo, temendo que sejamos mais livres, temendo a nossa saúde reprodutiva, temendo o nosso prazer. São negacionistas da histórica (e vigente) opressão das mulheres, desconsiderando milhares de anos de violência de género, de exclusão das mulheres do espaço público, de negação dos mais básicos direitos humanos a metade da Humanidade. E afirmam que estarão contra a lei e a ciência, se estas estiverem do lado dos “adversários da família”.
Pois muito bem, há que dizê-lo claramente, existem de facto inúmeros adversários da família que importa identificar e erradicar, mas não serão nem a lei (em que a igualdade de género se consagra, ou o direito à IVG, ao divórcio e à autodeterminação de género), nem a ciência (unânime na desmistificação dessa invenção beata da “ideologia de género”), muito menos os perigosos progressistas (quando os radicais são eles).
Meus senhores, os inimigos da família são as políticas de austeridade, a crise da habitação, a subida das taxas de juro, a inflação, os baixos salários, a precariedade, a falta de perspetiva de futuro, a guerra na Europa, as alterações climáticas, a falta de apoios à parentalidade, a escassez de creches a preços comportáveis, a degradação da escola pública, os problemas de gestão do SNS, o preço da eletricidade e a pobreza energética, o caos das urgências obstétricas e a pobreza, exaustão e sobrecarga das mulheres.