A recente "crise" política, aberta pela ameaça de demissão do primeiro-ministro, e entretanto já encerrada, revelou algumas características indesejáveis da política portuguesa.
Em primeiro lugar, os factos subjacentes à discussão de propostas políticas são distorcidos, não se conseguindo sequer acordo sobre eles. Foi notória a disparidade de números sobre o custo da reposição das carreiras congeladas dos professores, avançados pelo próprio Governo, com diferenças de várias centenas de milhões de euros. Percebeu se, entretanto, que o número mais elevado, de 800 milhões de euros, visava dramatizar, e que o custo total depende necessariamente da negociação sobre a forma de reposição. Mas a manipulação dos números, utilizados sem verificação independente, não é objeto de forte censura no espaço público.
Em segundo lugar, a falta de atenção à necessidade de respeitar os direitos dos cidadãos. As carreiras dos professores, como as dos outros funcionários, foram congeladas em situação de estado de necessidade financeiro. É normal que, desaparecendo essa situação como o Governo reconhece, seja exigida a recuperação do tempo de progressão retirado. É um direito que deve ser reconhecido, se tal for financeiramente possível. Pelo que é necessário determinar em negociação os custos concretos e os limites desta possibilidade.
Em terceiro lugar, voltou a ver-se, num grau que lembra os últimos tempos do Governo de José Sócrates, uma verdadeira "barragem mediática", com muitos comentadores encostados ao poder para criticar a oposição, selecionando apenas parte do discurso desta e ignorando outra. Ninguém considerou relevante, por exemplo, o facto de a posição do PSD ter sempre sido condicionada ao respeito por travões financeiros, que não foram aprovados pelo partido que apoia o Governo.
Em quarto lugar, a política portuguesa mostra-se muito vulnerável a golpes de teatro, mesmo que de má qualidade, como aquele a que assistimos para tentar influenciar as eleições europeias: ao fim de quatro anos, a menos de um mês da primeira eleição com que se confronta, o primeiro-ministro ameaça subitamente deixar o poder a pretexto de alegado acordo entre a oposição, ainda nem sequer objeto de votação e sobre medidas que só poderão começar a ter efeito (se algum tiverem) no ano seguinte às próximas eleições legislativas. E isto, sem qualquer texto escrito sobre esse pretenso acordo, ignorando a posição da maior parte da oposição e o que o próprio partido que apoia o Governo aprovara antes no Parlamento. Perante isto, no entanto, o relevante parece ser apenas a pequena tática política, saber se houve ou não falha de comunicação ou "recuo" da oposição...
Tudo, enfim, limitações do nosso manipulável espaço público, infelizmente semelhantes às que explicam a incapacidade de prevenir situações como a que conduziu inexoravelmente à última (pré-)bancarrota, no início desta década - protagonizada também pelos mesmo encenadores da mais recente farsa política.
*Professor universitário
