José do Canto (1820-1898) nasceu em 1820, ano da revolução liberal. Tinha mau espelho. Cultivava uma espécie de narcisismo às avessas. As fotografias não lhe devolviam a imagem que fazia de si próprio. Por isso nunca se deixava fotografar, apenas com uma só excepção, quando o permitiu "com o objectivo de os filhos, ainda crianças, dele se não esquecerem". A biógrafa, Maria Filomena Mónica, não se deixa iludir: "a modéstia que a atitude revela é uma pose, mas não deixa de corresponder a traços do seu carácter".
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Proprietário agrícola açoriano, José do Canto alargou os seus bens, herdados do morgado José Caetano, ao casar com Maria Guilhermina Brum da Silveira. Possuía terras principalmente em S. Miguel, mas também nas ilhas do Faial e Pico. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos não era absentista, administrava, orientava o labor nas suas terras, contratava feitores e despedia-os quando revelavam desleixo ou incompetência.
A vida de José do Canto é o fio condutor da investigação de Maria Filomena Mónica, intitulada "Os Cantos - A tragédia de uma família açoriana" (Alathéia, 2010). A obra estrutura-se num balanceamento entre a personagem singular, José do Canto, e a personagem colectiva, a família dos Cantos. Quando um cineasta amigo a incentivou a escrever um "romance" tendo como figura central José do Canto, Filomena Mónica preferiu manter-se no seu território: "Em vez de um romance queria escrever uma biografia", usando como fonte principal a epistolografia da família e seus amigos. A construção da personagem Canto efectuou-se com recursos semelhantes aos ficcionistas, mas no âmbito da investigação histórica. Enquadra-se o homem no contexto da época, mas "sem deixar que a bibliografia - sobre a sociedade, a economia e a política - o afogasse".
O biografado não aceitou o caminho da política. Quando os conterrâneos o quiseram propor para deputado, recusou o convite: "Nunca me filiei, nem sou filiado em algum dos currículos políticos que, por seu turno, têm dominado o país". Mas não hesitou em colocar a sua rede de influências e conhecimentos em Lisboa e nos Açores ao serviço de causas regionais, com destaque para a construção da doca de Ponta Delgada, fundamental numa ilha que não era dotada de porto natural, de forma a poder escoar com facilidade os bens agrícolas.
Na personalidade forte de José do Canto confluíam traços da tradição e da modernidade. Espírito cosmopolita, Canto deambulou ao longo da vida entre S. Miguel, Lisboa, Paris e Londres. A sorte ajudou-o a casar por amor (a mulher amada estava predestinada ao irmão mais velho, André, que não se submeteu aos ditames da família), numa época em que os matrimónios se planeavam em função de alianças entre famílias ricas e do valor dos dotes. Com o objectivo de educar o filho mais velho, António, como um "gentleman farmer", transferiu-se para Paris com a família, a mulher e cinco filhos. Os ambiciosos planos que gizara para os descendentes, acima de todos para o primogénito, explicam esta mudança. Mas a racionalidade com que José do Canto encarava a vida da mulher e dos filhos não se ajustava aos respectivos modos de ser. O mais velho, António, não progrediu nos estudos e rebelava-se em silêncio contra o pai. A mulher adoecia e queixava-se das múltiplas ausências do marido, que passava parte do ano em S. Miguel, a administrar as terras.
As cartas que escreveu a Maria Guilhermina, quando se encontravam afastados, assumem um "tom erótico" que Filomena Mónica classifica de "excepcional" tendo em conta o espírito do tempo: "(...) tu olhavas para mim com olhos arrasados de uma voluptuosa lágrima, sem me repreenderes. Eu cobria-te de beijos, apertava-te no colo, não me contentava de sentir, com uma mão tímida, o templo do prazer, estreitava-te contra mim, confundíamo-nos numa só existência e então, minha cara, o que sentíamos, para onde voávamos".
Com o insucesso dos filhos - o mais velho, alcoolizado e marginal, o segundo doente mental - com as maleitas da mulher nunca diagnosticadas em Paris ou em S. Miguel, o racionalista e fisiocrata José do Canto via ruírem os seus sonhos Daí a referência, no título, à "tragédia de uma família açoriana". Iluminista, racionalista e fisiocrata, José de Canto foi um modelo para os cidadãos do seu tempo: modernizou a agricultura, introduziu novas plantações, desde o chá ao tabaco, bateu-se pela construção do porto de Ponta Delgada, criou com esmero um magnífico jardim e coleccionou uma valiosa camoniana. Tanto sucesso e tanto racionalismo não o ajudaram, porém, a lidar com os dramas de família. Maria Filomena Mónica conclui que "a não ser em momentos efémeros, os homens não estão destinados à felicidade".
