Com toda a brutalidade dos realmente injustiçados, decidiu furar a luz cegante do desconhecido (...) irrompendo, atónito com a sua própria sobrevivência, no redondel da praça de touros.
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O enjoo tinha-se tornado quase insuportável. Corria como uma torrente desaguando na boca na espuma mais desagradável que já tinha sentido. Tentou engoli-la, mas não conseguiu. Estava muito escuro. Os barulhos que agora o rodeavam atormentavam-no mais que tudo. Primeiro, tinham sido quase embaladores. Tinham-lhe trazido uma espécie de torpor, mas o conforto da habituação tinha sido rompido com safanões de uma brutalidade intolerável que o fizeram tentar freneticamente a fuga. Mas não havia por onde. Veio a escuridão cheia de cheiros e mais barulhos. Ele que tinha aprendido a entender o despontar do dia, o cair da noite, o relâmpago que fazia tudo ver, o estrondo do trovão, isto não compreendia.
Não tinha nome. Era integralmente mau. Sabia-o em cada guinada de vómito e em cada aguilhoada do sofrimento. E a náusea nasceu numa espiral estreita de intenso desalinho orgânico que parecia estar de fora, mas que, aos poucos, o foi ocupando. Sentiu todo esse avanço da dor. Às vezes, era lento, outras vezes alucinantemente rápido, para lhe chegar até à alma e descer logo a seguir deixando um sulco encardido de memórias latejantes.
Num destes trajectos, houve alívio instantâneo quando o seu organismo se libertou de alguma dor que lhe jorrou incontinente pelo corpo fora. Em circunstâncias normais claro que se teria afastado repelido pelo odor fétido do que o organismo não queria, indo buscar as essências que o faziam ocasionalmente inspirar bem fundo, e no prazer da frescura limpa sentir uma vontade de correr irresistível e força para galgar o Mundo, todo, sem parar. Tinha sentido estas alegrias vezes sem conta. Mas nada era normal agora. Não se podia nem correr nem respirar fundo, e a sofreguidão com que sorvia o ambiente cheio de mensagens pútridas que o rodeava não lhe dava alívio para o sufoco nauseabundo que aos poucos o dominava. Não fazia ideia há quanto tempo durava o terror.
O seu único tempo era o dos ciclos da náusea, da dor, do barulho, do mau cheiro, onde não havia pausas. No meio do tormento, continuava dolorosamente consciente. Depois, houve um momento ainda mais medonho que todos. Tudo parou. Se ainda há pouco ansiava por uma pausa, agora o vazio parecia intolerável. "Meu Deus, tenho medo", teria pensado se acreditasse em Deus e se conseguisse pensar. E acreditou uma vez mais na salvação quando subitamente cegou com o brilho da luz que se criou à sua frente. Acreditou e esqueceu de imediato as dores, a náusea, os vómitos, os cheiros e lançou-se numa desabalada fuga para a promessa de mudança para o que quer que fosse com que o brilho e uma lufada de vento lhe acenaram. Luz e ar livre chegaram para o convencer de que pelo menos um tormento podia ter chegado ao fim. E avançou sem hesitação como um apóstolo no dia da ressurreição. Sem a tibieza dos descrentes. Com a coragem dos muito zangados. Com toda a brutalidade dos realmente injustiçados, decidiu furar a luz cegante do desconhecido, trovejando primeiro pelo chão duro e desconfortável das pedras e depois velozmente num terreno subitamente suave a prometer bom sucesso a todas as fugas apavoradas e irrompeu, atónito com a sua própria sobrevivência, no redondel da praça de touros do Campo Pequeno.