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Não é fácil agarrar o real tal a complexidade das representações que hoje o asfixiam em sentidos previamente fixados, muitas vezes como resultado de complexas estratégias de manipulação. O espetáculo criado em torno da libertação dos reféns pelo Hamas ou, no plano caseiro, a triste encenação à volta do roubo das malas nos aeroportos de Lisboa e de Ponta Delgada são exemplos do muito que a atualidade noticiosa nos devolve em permanência.
A libertação de prisioneiros israelitas promovida ontem pelo Hamas repetiu o guião do sábado. No passado fim de semana, quatro raparigas foram entregues à Cruz Vermelha enveredando fardas militares, dando-se assim a ver como combatentes das forças de Israel e não como simples mulheres civis. O demorado ritual de libertação, feito no meio de aclamações, ergueu um palco da demonstração de força do grupo islâmico, ampliado à escala global pela transmissão em direto promovida pelas televisões e pelos sites e redes sociais. À volta destas pessoas agora libertadas vê-se um forte dispositivo militar de homens de cara tapada, ladeados por outros com câmaras de vídeo em riste. As armas são diferentes, mas encontram-se no poder que reúnem para transmitir determinadas mensagens. Depois de prolongados diretos, o que sabemos acerca daquilo que se passa? Muito pouco, porque há um real que permanece inacessível.
Por cá, temos andado entretidos com o roubo das malas nos aeroportos, protagonizado por um deputado cujas declarações aos jornalistas são de tal forma inverosímeis que deveriam ser reduzidas ao mínimo, porque em segundos percecionamos um homem sem qualidades que dispensa qualquer atenção além desse tempo. Entretanto, o Chega procurou mudar o foco do deputado Manuel Arruda para o presidente da Assembleia da República que, na opinião de André Ventura, terá desvalorizado a informação que lhe foi transmitida. No meio de tantas trapalhadas, a Iniciativa Liberal ensaiou outra agenda, declarando que quer ouvir António Costa sobre uma “pen drive” apreendida há mais de um ano num cofre no gabinete de Vítor Escária, à data chefe de gabinete do então primeiro-ministro socialista, cujas investigações decorrem a cargo do Ministério Público.
Num tempo em que a realidade é fortemente discursiva e em que as fontes que constroem a informação recriam versões de acordo com os seus interesses (muitas vezes tenebrosamente subterrâneos), o real torna-se inacessível. Por isso, não raras vezes sentimos uma enorme estranheza perante factos que ganham outra vida, quando apresentados através de palavras e de imagens por certos interlocutores. E assim seguimos espectadores de um teatro onde a verdade se esconde em bastidores fora do nosso alcance.