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A chuva caiu durante dias, como se o céu tivesse finalmente decidido soltar tudo o que guardou em meses de silêncio. Do Algarve ao Norte, o país afogou-se num mesmo sobressalto: ruas tornadas rios, casas incapazes de resistir à força bruta das correntes, famílias desalojadas, vidas suspensas entre o susto e a tristeza. Houve mortes, feridos, perdas materiais, houve aquele vazio que se instala quando a natureza nos lembra que o que era ontem seguro, hoje já não é.
O solo, há tanto tempo queimado por secas intermináveis, tornou-se pó. E o pó, quando recebe chuva demais, não a bebe: repele-a. Desliza, racha, leva com ele encostas, caminhos, memórias. Não é apenas o que acontece, é a velocidade com que acontece. Fenómenos que eram exceção tornam-se hábito e tempestades que antes surpreendiam agora repetem-se, mais fortes.
E, como sempre, atingem os mais vulneráveis: os que vivem em casas frágeis, os idosos, os que não têm abrigo. Mas, se chega na forma de um tufão, aí já não há distinção: tudo voa, tudo cai.
Podemos continuar a fingir que isto é acaso? Que são "anos esquisitos"? Ou teremos, finalmente, coragem de aceitar que são as alterações climáticas que nos batem à porta, sem pedir licença? A COP30 tentou gritar, mas ainda há quem tape os ouvidos, como se ignorar o perigo o afastasse.
Chegou o tempo de mudar atitudes, gestos, prioridades. De usar a inteligência, a ciência, a política e a solidariedade para mitigar o drama que criámos. Porque este não é um aviso para os outros, é para nós. Para todos nós.
Que cada cidadão sinta, no silêncio depois da tempestade, a urgência coletiva de proteger o único chão que temos. E que encontre, nesse apelo, a força de agir.
