A Sara, que me chama carinhosamente Tio Pedro, pintando ainda mais de branco o meu cabelo, escreveu aqui, há dias, sobre os danos psicológicos que impendem sobre os mais jovens, quando sujeitos à tóxica combinação de inteligência artificial (IA) e redes sociais. Em causa estavam ideais de beleza e a frustração que provocam. Desde os tempos clássicos, pela arte, a difusão desses ideais, falsos como Judas, sempre existiu. E acompanhou, depois, o ritmo de massificação da informação: a fotografia, o cinema e a televisão deram os primeiros passos, a febre de instantaneidade propiciada pela Internet poderá parecer o golpe de misericórdia.
O problema era a beleza, mas podemos também falar de bom senso. E nem precisamos da IA. O Tio Pedro, esclareça-se, faz parte da Geração X, “grosso modo” o pessoal nascido nas décadas de 1960 e 1970. Somos os que ainda cresceram sem computadores, telemóveis e cartões multibanco, os últimos com agilidade no manuseio de uma lista telefónica ou de um dicionário. Entre nós há os que lutam por manter o tino e os que, enredados nos novos ritmos da vida, dão roda livre ao disparate. Tendo a colocar-me entre os primeiros, o que pode significar que estou entre os segundos.
Enquanto utente de transportes públicos, espaços privilegiados de observação do mundo, gosto de estar atento às pessoas. É essencial, para quem escreve profissionalmente, seja na fidelidade ao real do jornalismo, seja no imaginativo afã da literatura, perceber onde e com quem está nesta curta viagem - da vida, não do metro ou do autocarro.
O mais comum é ver gente curvada sobre os ecrãs de bolso, desligada da envolvente. Essas são pessoas desinteressantes, enquanto objetos de estudo. Nada nos dão além das vidas que lhes podemos inventar. Quem nos alimenta a imaginação, sendo esta um processo de digestão transformadora da realidade, são as outras, falando ao telemóvel, entre estranhos, como se todos fizéssemos parte das vidas delas e sem qualquer tipo de pudor. Ouve-se de tudo. Problemas de saúde, dramas conjugais, paixões em crescendo, paixões em diminuendo. E frases de antologia. Estranhamente, a única voz que agora me ocorre é a da sujeita a berrar para uma amiga, num autocarro pouco cheio e vagamente silencioso: “Ó mulher, tira os colh... da boca e fala!...”

