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Enquanto aguardo que o homem que governa Portugal aprenda finalmente a não rir a toda a hora, pois tem empresas e patrimónios muito mal explicados, e nós, portugueses, incêndios e desgraças, enquanto espero que o homem que governa Lisboa explique a sua obsessão em custear unicórnios de luxo numa cidade cheia de lixo e tragédia urbana, vou-me preparando para os julgamentos da Glória.
Talvez nunca aconteçam e que se apure, sem margem para dúvida científica, ou humana negligência, que o desastre do elevador da Glória, esta semana, estava escrito nas estrelas, nada havia a fazer a não ser ir à missa rezar pelas almas. Mas desconfio que - não sei quando, daqui a meses, anos? - vamos ter 16 ou mais julgamentos pelos mortos, e outros vinte e tal pelos feridos, muitas contas para saldar nas seguradoras recalcitrantes, centenas de depoimentos para ouvir em tribunal. Espero cá estar ainda eu para ouvir e contar, eu que regresso de férias e só vejo as notícias em modo relâmpago, em flashes curtos para não me agoniar.
Numa rádio, a senhora que ia ajudar os passageiros do funicular de baixo, quando viu o de cima desabar e esmagar o primeiro homem no passeio, à sua frente, saltando à última hora para não morrer também. Será ela testemunha outra vez, um dia.
Numa televisão, o senhor idoso de olhos vermelhos que se baralha porque viu tudo mas não consegue dizer bem o que viu, um dia será ele testemunha na justiça, talvez.
Num grande jornal internacional, o homem que viu uma mulher a sair dos destroços, esta agarrou-lhe a mão e desabou em cima dele: "Ela morreu nesse instante, foi a primeira vez que alguém morreu tão perto de mim". Um dia testemunhará.
Num jornal português, a cientista italiana que viajava com o filho, partiu um braço, viu muito sangue e lembrou-se de outra coisa, "o terror de terramoto em L"Aquila voltou-me ao estômago". E ao ler isto também eu me lembrei dessa mesma madrugada quando, com os meus filhos pequenos em viagem, acordei num hotel de Roma que abanava.
Tudo são memórias históricas e pessoais em construção, revisão.
Num Wattsapp de família, a prima que trabalha numa estação de TV que nos disse terem chegado imagens que nunca poderão ser divulgadas.
Um dia, a Glória chegará às salas de julgamento, neles assisti a relatos de desastres terríveis, volto ao passado e releio na crónica "Já está" o testemunho do taxista:
Eu tinha estado a meter gasóleo e vinha a subir a Estados Unidos da América, para Entrecampos. Vinha sem pressa e vejo uma série de automóveis do outro lado. Vejo a senhora com a criança ao colo, mas a faixa esquerda do sentido descendente estava livre.
Vejo a senhora a passar com a criança, repetiu o taxista a ganhar tempo. Continuou:
Então ouço, e vejo, um carro a surgir e deito as mãos à cara e digo "já está". Não havia hipóteses.
Outro caso: o rapazinho que ficou tetraplégico, atropelado por um condutor sem carta nem seguro nem dinheiro e, mesmo assim, o nosso muito público Fundo de Garantia Automóvel dava instruções vergonhosas ao seu advogado para recusar a indemnização.
Outro caso ainda: as primeiras imagens que vi, num computador, com bonequinhos toscos que reproduziam o momento em que corpos saltavam no ar e se desarticulavam no chão, imitando o momento real do acidente, os traços dos pneus pintados no chão.
Esta semana foi um fim e um começo de novos horrores. Os 51 segundos do Elevador da Glória, pela encosta de Lisboa abaixo, ficarão com todos nós, terrível património.
*O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA