A GMN europeia, excesso regulatório e procedimental (II)
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Sem exagero, talvez possamos dizer que a regulação é o poder natural próprio de uma organização supranacional sui generis dotada com meios orçamentais reduzidos. De facto, o poder regulatório identifica-se com o federalismo jurídico-monetário existente e pode, mesmo, ser estendido para outras áreas com maior dificuldade de integração. Na verdade, a regulação é um instrumento muito ágil de relação entre os Estados-membros, podendo abranger policy-areas muito diversas, seja por intermédio de uma informação simples, de uma monitorização das políticas públicas nacionais ou de uma administração indireta obtida por delegação executiva do Conselho ou da Comissão. Por outro lado, e dado que trabalha, essencialmente, com meios técnico-jurídicos, a regulação pode estar na origem de uma relativa inocuidade política, se quisermos, uma espécie de governação cinzenta, muito próxima dos interesses corporativos da tecno-burocracia supranacional e com acesso relativamente fácil por parte do lobbyimg institucionalizado. Falamos do poder regulatório e de reguladores quase invisíveis, inscritos na lógica funcional-procedimental e com uma baixa intensidade orçamental.
A União Europeia é, como sabemos, uma mistura de representações, democrática, corporativa e tecnocrática, agora e cada vez mais intermediada pelo aparelho tecno-digital. A legitimidade da União Europeia baseia-se na qualidade democrática dos governos dos Estados membros, na performance dos resultados e no consentimento dos governados. Existe uma compreensão partilhada, ainda que difusa, de que um misto de representação funcional, regulação tecnocrática e deliberação institucionalizada, aumentará a legitimidade da governança europeia (GMN). A União não é, como sabemos, um sistema maioritário, mas de negociação permanente e recorrente, um sistema constelar em que à volta de cada instituição gira uma diferente constelação de interesses. A governança europeia resulta, em linha direta, desta confluência de diferentes representações/legitimidades e constelações de interesses, sendo que a Comissão se preocupa em valorizar o carácter unitário do sistema e em integrar nele muitos diferentes tipos de atores. Se a Comissão Europeia tem um interesse específico em valorizar o estado unitário do sistema e o interesse comum superior ao interesse das partes, o intergovernamentalismo dos Estados membros continua a ser uma alternativa atraente para as partes mais frágeis e mais relutantes do sistema. Assim, os diferentes padrões governativos oscilam em função da diferenciação intergovernamental, de um lado, e da abordagem unitária europeia, de outro.
Neste contexto, como se compreende, o risco de pulverização e congestionamento é muito elevado, tanto mais quanto os alargamentos, a globalização, a crise da ordem liberal e agora o impacto das guerras na fronteira europeia sujeitam a União Europeia a penosos processos de ajustamento político, económico, social e orçamental. Por isso, justamente, a necessidade de a União se reencontrar num patamar de equilíbrio superior, o patamar federal, que nos ajude a redefinir as fronteiras das políticas europeias. É aqui que nos encontramos, numa encruzilhada do projeto político europeu, em que:
- Ou continuamos a gerir o estado regulatório e procedimental europeu, com métodos e processos cada vez mais maioritários e mais Estados relutantes pelo caminho,
- Ou usamos o perigo e a ameaça externa para iniciarmos uma nova fase da construção europeia, por exemplo, o federalismo cooperativo, para convencer os governos relutantes a aderirem a políticas europeias que visam interesses comuns.
Em qualquer caso, os Estados nacionais são os árbitros finais. O Conselho Europeu e o Conselho de Ministros delimitam a política de fronteira, quase sempre em volta de conceitos hegemónicos que definem os objetivos essenciais, os modos de operação, o âmbito e a extensão do campo de aplicação e as condições de acesso dos agentes socioeconómicos. Dito isto, uma abordagem conservadora e incremental, centrada sobre os meios, reforçará o pendor do estado regulatório e procedimental, isto é, o realismo da governança europeia, sendo que, em qualquer momento, a contingência doméstica ou internacional pode suspender o curso normal do empreendimento. Uma abordagem mais reformista e federativa, centrada sobre as missões e os interesses comuns europeus, pode recentrar o projeto europeu na via da high politics e, dessa forma, insuflar-lhe um novo fôlego.
A história europeia e comunitária é conhecida. Na União Europeia, a supervisão do mercado único e da moeda única e de outros conceitos hegemónicos – espaço de liberdade, segurança e justiça, desenvolvimento sustentável, espaço judiciário comum, segurança e defesa comum, cooperação económica externa, espaço social europeu, espaço europeu de ensino superior e investigação – solicitará novas atividades de regulação e procedimento, porém, mais controlo de natureza jurídico-administrativa já não parece suficiente e um controlo mais eclético parece recomendável. E o que é esta orientação nos diz acerca da natureza futura das políticas públicas de regulação e da governança europeia?
Vistas pelo lado da oferta, as políticas de regulação europeia revelam que:
- São mais baratas do que as políticas públicas de despesa direta,
- Os eurocratas adquirem influência sem aumento de orçamento,
- A regulação aumenta as competências de execução da Comissão,
- Existe um efeito anestesiante do spill-over jurídico sobre as políticas de regulação,
- A médio prazo as políticas de regulação podem converter-se em despesa direta.
Vistas pelo lado da procura, as políticas de regulação europeia revelam que:
- São ditadas pelas necessidades funcionais da integração,
- Substituem a falta de credibilidade política dos acordos entre Estados membros,
- Aumentam a capacidade negocial da União face aos seus concorrentes,
- O excesso regulatório e procedimental, porém, põe em causa competitividade europeia.
Ora, é neste último ponto, o excesso regulatório e procedimental europeu e o seu impacto sobre o binómio produtividade-competitividade, que esbarra a governança multinível europeia. Com efeito, se tivermos em conta todas as fases do policy-cycle europeu – consulta, proposta, parecer, negociação, deliberação, implementação, controlo, avaliação, auditoria – resulta evidente que os custos de contexto e transação induzidos pelas leis europeias provocarão muitos efeitos externos negativos e discriminatórios que põem em causa, por um lado, a justeza e a justiça do mercado interno europeu e, por outro, os impactos diferenciados da concorrência externa. E na atual conjuntura, com a guerra das tarifas em curso, tudo isto resulta muito mais agravado. A GMN europeia parece, pois, estar num impasse. O excesso regulatório e procedimental dificulta a inovação tecnológica e digital e a competitividade inteligente, mas a redução da política regulatória abre a porta a muitos bens e serviços produzidos em condições infra-humanas e prejudiciais ao ambiente e aos seres humanos.
Nota Final
Aqui chegados, a GMN europeia está numa espécie de limbo. Por um lado, a lei europeia deveria assegurar, apenas, um quadro suficiente de princípios e objetivos (uma racionalidade limitada) e uma metodologia processual adequada à fluidez de todas as fases do processo comunitário. Digamos que a lei europeia deveria ser uma lei modesta e não pretensiosa, uma espécie de meta-procedimento, que não assumisse proporções burocráticas ofensivas para os cidadãos e os agentes económicos, sob pena de gerar efeitos contraproducentes para o projeto europeu. Por outro lado, a metodologia
procedimental da GMN deveria deslocar-se para jusante, mais próxima do beneficiário-destinatário final e aí criar um espaço público de diálogo e esclarecimento que ajude a democratizar o Estado-administração e impeça a sua captura pela grande consultoria e assessoria jurídico-administrativa. Agora que a digitalização e a inteligência artificial entram plenamente em jogo, deveríamos evitar que se crie uma primeira divisão da política regulatória europeia para os grandes grupos multinacionais, com acesso facilitado, e uma divisão de segunda ordem, burocrática e discriminatória, de difícil acesso, para os restantes atores comunitários. Um grande desafio que fica em aberto, para seguir nos próximos capítulos.