A GMN europeia, um híbrido de integração e cooperação (III)
Corpo do artigo
A política europeia ao desestruturar a política doméstica funcionou como um poderoso fator de modernização do Estado e da sua administração, não obstante o excesso de procedimentos formais ter dado lugar a inúmeros vícios de forma. De facto, a integração europeia não só alterou o sistema e o padrão governativo em direção ao estado regulatório e procedimental como promoveu a diferenciação e segmentação dos interesses, logo, a sua composição e coligação diversificadas. O Estado regulatório e procedimental que se pratica nesta fase do processo de integração, sobretudo nas áreas do mercado interno, da moeda única e das regras orçamentais, a cooperação intergovernamental nas áreas de liberdade e justiça e de segurança e defesa e, ainda, os free raiders e o lobbying da negociação de bastidores são as faces da governação multinível europeia (GMN), um misto de integração, cooperação e influência.
Entretanto, a globalização, a integração europeia e a regionalização, cada uma a seu modo, contribuem para transformar o Estado-administração convencional num Estado exíguo. A consequência óbvia deste facto é um espaço público sob pressão constante onde se pede, ao mesmo tempo, menos Estado e mais apoio público. Não admira, por isso, que se tenha trocado a intervenção do Estado pelo discurso sobre a ética republicana, confrontada por sua vez, a todo o tempo, com o utilitarismo dos interesses e a sua desigual relação de forças.
A transição paradigmática em curso, a três velocidades, produz fortes choques assimétricos na GMN. A globalização e a regionalização progridem imparavelmente, embora, na atual conjuntura histórica, estejam, digamos, em compasso de espera, a aguardar que a guerra no leste europeu tenha um desenlace favorável. A integração europeia, por sua vez, é uma zona de impacto extremamente pressionada pelos efeitos da guerra na Ucrânia, que busca, neste momento, afanosamente, uma nova forma de relegitimação política e uma nova racionalidade geopolítica e geoestratégica que ponha ordem na anarquia madura em que estamos mergulhados. O equilíbrio final entre estas três velocidades não é fácil de prever nesta altura. É como se tivéssemos de construir um novo interesse geral, mas em condições extremamente precárias.
Com efeito, no estádio atual da GMN, um projeto constitucional europeu não está disponível. Restam-nos, portanto, algumas propostas híbridas de integração e cooperação. Em primeiro lugar, um diretório institucional europeu mais exigente com duas faces (1): um Congresso europeu com duas câmaras, a saber, um Senado europeu constituído a
partir do atual Conselho Europeu e o Parlamento europeu tal como está, e um Executivo europeu formado pelo Conselho de Ministros e a Comissão Europeia com as adaptações necessárias. Em segundo lugar, um governo de missão de geometria variável (2) a partir da formação de cooperações estruturadas reforçadas previstas no Tratado de Lisboa com a coordenação de um Executivo europeu. Em terceiro lugar, um diretório intergovernamental europeu (3) para lá das fronteiras da União, por exemplo, no âmbito de um Tratado Europeu sobre Segurança e Defesa. Por último, um sistema híbrido de integração e cooperação (4) que seja uma combinação variável de todas estas soluções de acordo com as policy-areas em questão.
Quero acreditar que a conjuntura histórica que a União Europeia atravessa é suficientemente grave e séria para justificar alguns ajustamentos no seu processo de integração e cooperação. Como é evidente, não se confunde o discurso com a necessidade, mas a redescoberta de um novo interesse geral comunitário, europeu e global, parece fundamental para forjar uma nova estrutura de ordem para o Estado pós-keynesiano e pós-nacional. E nesta linha de pensamento, a nova governança multinível europeia estará no cruzamento de duas racionalidades políticas, a saber: a do federalismo cooperativo, com um congresso bicamaral e um executivo europeu, como atrás se referiu, e a do neo-regionalismo europeu, uma articulação virtuosa entre regionalização infranacional e regionalização supranacional que as plataformas colaborativas da sociedade da informação e do conhecimento podem facilmente promover. Ou seja, no final, a integração e a regionalização serão as duas vertentes, externa e interna, responsáveis pela modernização política do Estado nacional. Recomenda-se, mesmo, um paralelismo adequado entre estes dois processos de modernização. Num Estado de estrutura unitária e com uma sociedade longamente estatizada, como é a nossa, uma transferência de poderes e competências para a União sem uma correlativa devolução de poderes para entidades infranacionais pode parecer uma traição e um crime de lesa-pátria. No limite, se aquele paralelismo não for acautelado, podemos vir a ter uma situação insustentável de Estado-exíguo com nação a mais e economia a menos, ou seja, uma situação social e politicamente explosiva, em virtude de o Estado-administração se apresentar como uma empresa política de viabilidade duvidosa e a nação como um país arquipélago com algumas ilhas de desenvolvimento extrovertido enquanto a maioria empobrece alegremente.
Em síntese, estamos numa conjuntura histórica única e num momento de viragem do projeto político de construção europeia. Dois vetores de mudança estão já em plena
laboração. Em primeiro lugar, um sistema de governança multinível e administração-rede, nos planos supra, infra e transnacional. Em segundo lugar, está em mutação a relação entre a administração e o cidadão, diríamos, a mutação do poder em responsabilidade partilhada. Já se antevê, em consequência, a nova missão do nível nacional como árbitro privilegiado de relações centrífugas situadas abaixo e acima do seu nível, dessa missão retirando, porventura, mais poder efetivo do que anteriormente. Neste percurso longo, o Estado-nação fará, muito provavelmente, o percurso que o levará do Estado-Providência ao Estado-Procurador com passagem obrigatória pelo Estado-Regulador. Isto é, um Estado compósito ou composto, em doses crescentes, de providência, regulação e procuração. Em suma, um Estado promotor e patrocinador do associativismo de interesses, seja do lado da oferta ou do lado da procura, podendo, ele próprio, propor-se formas supletivas de associativismo em razão da natureza difusa dos interesses.
Assim sendo, a noção de governança europeia põe em relevo duas racionalidades fundamentais que precisam urgentemente de comunicar de forma criativa: a racionalidade da sociedade convencional, institucionalizada, com base na solenidade da divisão tripartida dos poderes e a racionalidade da sociedade criativa do futuro, baseada na prospetiva, no planeamento contingente e na cooperação empenhada entre poderes modestos e colaborativos e que procedimentalizam as suas relações tendo em vista evitar os excessos de administrativismo e judicialização. A comunicação política entre os parlamentos nacionais e o parlamento europeu, entre as administrações europeia, nacionais e regionais, entre os tribunais europeus e nacionais, a troca de boas práticas e os processos descentralizados de aprendizagem coletiva, são tudo contributos decisivos para a governança europeia e não precisam, em princípio, de solenidade constitucional. Apesar de não haver uma polity europeia suficientemente madura para justificar uma estrutura maioritária de políticas públicas mais alargada, o que é certo é que, não obstante essa evidência, as instituições não-eletivas conseguiram guardar uma estratégia compreensiva face às atuais competências partilhadas e complementares. Quanto ao resto, que é muito, falta dar intencionalidade e profundidade políticas aos desafios que hoje se apresentam.