A governação do interior e suas interfaces territoriais. Estruturas de missão executivas
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Volto ao tema da governação do interior, um tema que, por razões conhecidas, regressa periodicamente ao nosso ambiente comunicacional. Permita-me o leitor mais uma breve reflexão sobre a governação do interior e suas interfaces territoriais. As minhas desculpas, mas o fogo repete-se e os meus argumentos também.
A forma como construímos e ocupámos o nosso território reflete bem o modo como cumprimos o último meio século da nossa história. Cinquenta anos sobre a revolução de abril de 1974 e quase 2/3 dos municípios do continente são classificados como áreas de baixa densidade, em muitos casos de abandono puro e duro. Não é, de certeza, um bom cartão de visita. Os territórios são espaços construídos, têm um tempo de vida útil, estão em constante movimento de desterritorialização e reterritorialização, mas, também, de muitas mobilidades e multiterritorialidades. Estes movimentos e mobilidades são fundamentais para perceber como, por exemplo, as nossas áreas de baixa densidade (ABD) podem ser espaços virtuosos de múltiplas territorialidades e territorializações, desde que tenhamos inteligência coletiva suficiente para criar neles múltiplos espaços de significado e intervenção. O que acontece, no nosso caso, é que nos falta inteligência coletiva e autorreferenciação territorial suficientes para produzir espaços de futuro promissores e politicamente pertinentes que nos fornecem alternativas relevantes e opções realistas para prosseguir à nossa escolha, em vez de aceitarmos, quase sempre como boas e definitivas, a retórica programática habitual e as imagens estereotipadas do discurso oficial das autoridades nacionais em redor das sucessivas gerações de programas europeus de incentivos. Estão aí, mais uma vez, os programas com dezenas de medidas, como se um problema estrutural de longa duração fosse resolvido por programa abertos e candidaturas avulsas sem que no terreno haja uma estrutura de missão executiva empenhada em dar orientação e consistência económica e territorial às candidaturas apresentadas e em transformar esse programa num conjunto coerente de medidas de desenvolvimento multiterritorial.
Infelizmente, nos anos mais recentes, e apesar dos fundos europeus, o processo de desterritorialização provocou lesões graves no tecido social dos nossos territórios, que perderam capacidades e competências para gerar a cooperação multiterritorial e, portanto, novos horizontes de futuro. Os recursos e a diversidade continuam lá, em estado latente, mas não existe inteligência coletiva territorial e pluralidade suficientes para gerar a instigação que é necessária à mobilização dos cidadãos e à transformação dos recursos em ativos do território. Sem estes horizontes mais alargados fica mais difícil gerar novas territorialidades e territórios-rede com futuro. Vejamos algumas causas deste processo de desterritorialização (1):
- A deslocalização empresarial motivada pela globalização comercial e financeira,
- Os custos de contexto excessivos motivados por políticas de austeridade severas, pesadas cargas fiscais e custos regulatórios elevados,
- O encerramento de serviços públicos, bancários e seguros, por razões de racionalização das redes respetivas, gera deseconomias externas aos territórios,
- O excesso de zelo regulamentar (normalização, padronização, calibragem) deixa muitas micro e pequenas empresas no limbo entre a economia formal e informal,
- As áreas de baixa densidade vivem o círculo vicioso do despovoamento, os mercados são muito pequenos e o défice de procura estrangula todas as formas de negócio,
- As falhas de investigação e integração sobre a economia dos territórios-rede relega para plano secundário a agroecologia, as tecnologias intermédias, os saberes tradicionais e os recursos endógenos e torna praticamente inviáveis os sistemas produtivos locais,
- As falhas de articulação, estruturação, integração das relações cidade-campo são uma fonte de problemas nos territórios periurbanos e suburbanos das nossas cidades,
- À semelhança da pressão imobiliária urbana, também a especialização e intensificação provocam pressão fundiária, concentração da propriedade, erosão dos solos e abandono,
- A turistificação abusiva do território provoca uma sobrecarga desproporcionada sobre os recursos naturais e culturais do território e danifica bastante a sua estrutura de oportunidades e benefícios,
- As alterações climáticas e os riscos globais associados, por exemplo os fogos florestais, fragmentam os ecossistemas e os habitats, as comunidades e as populações, destruindo os seus territórios e quadros de vida; a falta de prioridade atribuída à economia dos ecossistemas e mosaicos paisagísticos relega para plano secundário a valorização dos serviços de ecossistema e os benefícios das paisagens globais.
Vejamos, agora, neste duplo movimento, alguns fatores favoráveis ao processo de reterritorialização (2):
- O quadro europeu pode criar regras de condicionalidade positiva para promover as relocalizações empresariais e a reindustrialização,
- A cooperação transfronteiriça pode fazer convergir os custos de contexto e criar áreas de localização empresarial, por exemplo, nas euro-cidades e euro-regiões,
- Uma nova política de serviços públicos que troque, sempre que possível, o encerramento de serviços pela itinerância dos serviços, aumentando a sua polivalência,
- Adotar uma atitude pedagógica e criativa face à economia informal pode ajudá-la a progredir e a legalizar-se, por exemplo, ajustar progressivamente a regulamentação ao hiper-realismo dos mercados locais, evita a passagem do sector formal para o informal,
- Promover um urbanismo responsável que crie espaços públicos na cidade e formas mais inovadoras e criativas de comércio tradicional,
- Promover a escola aberta e comunitária enquanto projeto educativo, artístico e cultural para os concelhos alarga os públicos disponíveis para outras atividades,
- Aproximar as universidades e os politécnicos das economias locais, ao serviço dos sistemas produtivos locais, pela criação de uma infraestrutura ecológica dos concelhos e de mosaicos paisagísticos apropriados,
- Reinventar o continuum cidade-campo, renaturalizando a cidade, por um lado, e abrindo novos espaços públicos no campo, por outro,
- Ordenar e regular o acesso ao território para evitar a sua sobrecarga e os danos sobre os seus recursos naturais e culturais causados por uma turistificação intensiva.
Como dissemos no início, enquanto estes movimentos de desterritorialização e reterritorialização acontecem há outros tantos exemplos de mobilidades e multiterritorialidades (3) em processo de elaboração. Vejamos alguns desses exemplos:
- Mobilidades de recreio/lazer, certas ou ocasionais, individuais ou de grupo, movimentos de turistificação mais intensos e uma economia residencial de 2ª e 3ª habitação,
- Mobilidades pendulares de proximidade transfronteiriça, um novo estatuto para o trabalhador transfronteiriço e a regulação dos movimentos mais sensíveis às necessidades quotidianas de bens e serviços pessoais,
- Mobilidades relativas a grandes eventos periódicos: peregrinações, bienais de artes e cultura, grandes eventos musicais, de moda e desportivos, entre outros, criam habituação e rotinas em certos destinos territoriais,
- Mobilidades de carácter científico e universitário: desde os programas de mobilidade de estudantes ao recrutamento de investigadores e professores e as residências científicas de suporte a projetos internacionais,
- Mobilidades virtuais ligadas ao teletrabalho, a novas formas de organização do trabalho e ao nomadismo digital em associação com novos espaços de coworking e incubadoras do movimento starting up,
- Mobilidades ligadas à diáspora, movimentos migratórios e acolhimento de refugiados de natureza muito variada que se traduzem em sociedades cada vez mais multiculturais,
- Mobilidades ligadas à dinâmica das redes sociais, à força dos laços fracos, e de uma maneira geral, às relações sociais virtuais estabelecidas na economia das plataformas e suas aplicações, onde também se incluem os ambientes virtuais e imersivos,
- Mobilidades e multiterritorialidades no âmbito de acordos de cooperação bilateral e multilateral, por exemplo, a circulação de pessoas no quadro da CPLP,
- Mobilidades e multiterritorialidades ligadas aos acordos do clima, aos objetivos do desenvolvimento sustentável, ao pacto ecológico europeu, à proteção de áreas protegidas e às relações cidade-campo no âmbito da formação da 2ª ruralidade,
-Mobilidades e multiterritorialidades interinstitucionais associadas às redes de cidades património mundial da Unesco, de cidades criativas da Unesco, de capitais europeias da cultura da União Europeia, dos itinerários culturais do Conselho da Europa, entre outras.
Disto isto, e de um ponto de vista estrutural, a governação do interior e suas interfaces territoriais só estará operacional se formos capazes de desenhar para os territórios do interior projetos integrados e complementares de bens e serviços onde o ator-rede seja o agente principal de uma estrutura de missão executiva no território-rede. Em concreto, estou a referir-me a associações e/ou consórcios empresariais, a redes urbanas e/ou comunidades intermunicipais, áreas integradas de gestão paisagística, zonas de intervenção florestal, condomínios de vária ordem, etc. Dou aqui alguns exemplos:
- A gestão conjunta e colaborativa de parques e áreas industriais no que diz respeito aos custos de contexto, bens e serviços comuns e externalidades produzidas pelas unidades empresariais que os integram,
- A gestão comum e colaborativa de propriedades rústicas, que um banco de solos ou uma comissão técnica podem facilitar, e a gestão agrupada de zonas de intervenção florestal tendo em vista o ordenamento territorial e a redução do risco de incêndio,
- A gestão conjunta e colaborativa de consórcios empresariais, no que diz respeito aos clusters industriais, cadeias de valor, arranjos produtivos locais e marcas coletivas,
- A gestão conjunta de sociedades de agricultura de grupo e a gestão agrupada multiprodutos, sobretudo, em áreas de micro e pequenas explorações agroflorestais,
- A gestão comum e colaborativa de áreas de paisagem protegida para o ordenamento do mosaico paisagístico, biodiversidade e provisão de serviços de ecossistema,
- A gestão comum e colaborativa de baldios, áreas de montado, condomínios rurais, amenidades rurais e serviços de extensão rural.
Notas Finais
Em Portugal os territórios estão em movimento acelerado, sobretudo, por duas razões principais. A primeira é o declínio demográfico e o envelhecimento da população, a segunda é a saída para o estrangeiro dos jovens mais qualificados em busca de melhores empregos e remunerações. Estas duas razões são especialmente severas e somam-se à severidade das alterações climáticas e dos riscos globais com incidência especial nas áreas de baixa densidade do interior do país. Todos os setores da economia portuguesa são afetados pela falta de mão-de-obra e pelos baixos níveis de remuneração. Receio bem que a Grande Renúncia dos mais jovens neste contexto vá continuar. Sabemos que uma reforma estrutural desta relevância não se materializa a curto prazo, pelo que pode estar em causa uma parte substancial de todo o processo criativo ligado ao movimento dos territórios em transição. Acrescente-se que, sem consistência socioeconómica e empresarial a médio e longo prazo, um território não ganha autodeterminação suficiente para reverter um círculo vicioso que dura há várias décadas. Cinquenta anos depois, somos ainda um país da coesão, uma acumulação de capital de queixa que nos deixa um estranho amargo de boca!!
Termino com uma convicção. Não acredito em programas abertos e candidaturas avulsas para resolver problemas estruturais de longa data em áreas de baixa densidade. Todo o sistema de intervenção tem de ser deslocado para montante, o mais perto possível da origem dos problemas. Assim, sugiro que:
A CCDR seja o centro político do ecossistema regional e a sua plataforma analítica territorial, assim como a estrutura de missão para a programação, o planeamento e a avaliação regional do respetivo programa operacional (POR),
As Comunidades Intermunicipais, para lá das suas atribuições próprias, recebam delegação de atribuições e competências no âmbito do POR e que, para o efeito, constituam uma estrutura de missão executiva para implementar o seu programa integrado de desenvolvimento territorial onde se incluem os bens e serviços que são públicos e comuns à CIM,
Sejam constituídos os territórios-rede (T-R) que se afigurem imprescindíveis e, por delegação, as respetivas estruturas de missão executiva, tendo em vista a implementação de programas e projetos aprovados.
A principal tarefa no próximo futuro é, portanto, realizar a quadratura do círculo e pôr de acordo, no âmbito do POR, serviços regionais, comunidades intermunicipais, universidades e politécnicos, associações empresariais, e no interior deste quadrado criar uma plataforma colaborativa regional, uma inteligência coletiva territorial, uma estrutura de missão executiva ou ator-rede que seja capaz de criar dimensão crítica de realização nas parcerias e consórcios público-privadas e delegando, sempre que possível, em estruturas executivas dos próprios territórios-rede. Em particular, essa será, também, a grande tarefa e a missão essencial das direções regionais de agricultura, florestas e desenvolvimento rural na próxima década, ou seja, no âmbito da CCDR e do POR, de criar uma plataforma colaborativa regional que aprova candidaturas e realiza um programa integrado de desenvolvimento rural capaz de cumprir os 4E da boa administração pública, a saber, a eficácia, e a eficiência, a equidade e a efetividade.

